Capítulo 1: Introdução

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Introdução

Tradutores: Isabella Elba Marcelo, Jean Junkes, Júlio Vilar, Marcela Klis Barbato, Michele Marques; Bruna Camargo Soldera (líder de capítulo); Ricardo Hirata (gerente); Diego Fernandes Nogueira (diagramador); Everton de Oliveira (coordenador).

1.1  Água subterrânea, a Terra e o Homem

Este livro é sobre água subterrânea. É sobre os ambientes geológicos que controlam a ocorrência das águas subterrâneas. Sobre as leis físicas que descrevem o fluxo das águas subterrâneas. É sobre a  evolução química que acompanha seu fluxo. É  também sobre a  influência do homem no regime natural das águas subterrâneas; e sobre a influência do regime natural das águas subterrâneas sobre o homem.

O termo água subterrânea é normalmente reservado à água subsuperficial que encontra-se abaixo do nível freático em solos e formações geológicas que estão totalmente saturados. Devemos manter esta definição clássica, mas o fazemos com pleno reconhecimento de que o estudo deve basear-se numa compreensão do regime das águas subterrâneas num sentido mais amplo. Nossa abordagem será compatível com a ênfase tradicional no fluxo superficial e subterrâneo; mas também irá englobar o regime de umidade de solo superficial, não saturado, que desempenha um papel importante no ciclo hidrológico, e incluirá os regimes muito mais profundos e saturados e que tem fundamental influência em muitos processos geológicos.

Vemos o estudo das águas subterrâneas como de natureza interdisciplinar. Há uma tentativa consciente neste texto de integrar a química e física, geologia e hidrologia, e a ciência e engenharia em um grau maior do que foi feito no passado. O estudo das águas subterrâneas é pertinente aos geólogos, hidrólogos, pedólogos, engenheiros agrônomos, silvicultores, geógrafos, ecologistas, engenheiros geotécnicos, engenheiros de mineração, engenheiros sanitários, analistas de reserva de petróleo e, provavelmente, outros. Esperamos que nosso tratamento introdutório esteja em sintonia com essas amplas necessidades interdisciplinares.

Se este livro tivesse sido escrito uma década atrás, teria tratado quase inteiramente a água subterrânea como um recurso. As necessidades da época teriam ditado essa abordagem, os livros escritos nesse período refletiam essas necessidades. Eles enfatizam o desenvolvimento do abastecimento de água através de poços e do cálculo da produção do aquífero. Os problemas da água subterrânea vistos como tais são aqueles que ameaçam essa produção. Os aspectos de produção das águas subterrâneas ainda são importantes e serão tratados no texto com a deferência que merecem. Mas a água subterrânea é mais do que um recurso. É uma parte essencial do meio ambiente natural; conduz a problemas ambientais e pode, em alguns casos, oferecer um meio para soluções ambientais. Faz parte do ciclo hidrológico e o entendimento do seu papel neste ciclo é obrigatório se forem promovidas análises integradas na consideração dos recursos das bacias hidrográficas e na avaliação regional da contaminação ambiental. Em um contexto de engenharia, as águas subterrâneas contribuem para problemas geotécnicos, como a estabilidade da inclinação e a subsidência do terreno. A água subterrânea é também uma chave para a compreensão de uma grande variedade de processos geológicos, entre eles a origem de terremotos, a migração e acumulação de petróleo e a origem de certos tipos de jazidas, tipos de solo e formas de relevo.

Os cinco primeiros capítulos deste livro estabelecem as bases físicas, químicas e geológicas para o estudo das águas subterrâneas. Os seis últimos capítulos aplicam esses princípios nas várias esferas de interação entre a água subterrânea, a terra e o homem. Os parágrafos seguintes podem ser vistos como uma introdução a cada um dos capítulos posteriores.

Água Subterrânea e o Ciclo Hidrológico

A infinita circulação de água entre o oceano, a atmosfera e a terra é denominada de ciclo hidrológico. Nosso interesse concentra-se na porção terrestre do ciclo, uma vez que pode ser operacional em uma bacia hidrográfica individual. As Figuras 1.1 e 1.2 fornecem dois diagramas esquemáticos do ciclo hidrológico em uma bacia hidrográfica. Eles são introduzidos aqui principalmente para fornecer ao leitor uma introdução esquemática à terminologia hidrológica. A Figura 1.1 é conceitualmente melhor, na medida em que enfatiza os processos e ilustra o conceito de sistema de fluxo do ciclo hidrológico. O esquema de representação  da Figura 1.2 é frequentemente utilizado na abordagem de sistemas para modelagem hidrológica. Ele falha ao refletir a dinâmica da situação, mas promove uma clara diferenciação entre os termos que envolvem taxas de movimento (caixas hexagonais) e aqueles que envolvem armazenamento (caixas retangulares).

Representação esquemática do ciclo hidrológico.
Figura 1.1 Representação esquemática do ciclo hidrológico.

O fluxo de entrada para o sistema hidrológico ocorre em forma de precipitação, sob a forma de chuva ou derretimento da neve. O fluxo de saída ocorre como escoamento e como evapotranspiração, uma combinação de evaporação de corpos d’água superficiais, evaporação nas superfícies do solo e transpiração pelas plantas. A precipitação abastece os cursos d’água, tanto pelo escoamento superficial aos canais tributários, como pelas rotas de fluxo subterrâneo, pelo interfluxo e escoamento após a infiltração no solo. A Figura 1.1 deixa claro que uma bacia hidrográfica deve ser considerada como uma combinação tanto da área de drenagem superficial, parcela de solos subsuperficiais, bem como pelas formações geológicas que a sustentam. O processo hidrológico subterrâneo é tão importante quanto o processo superficial. De fato, pode-se argumentar que eles são mais importantes, pois é a natureza dos materiais subterrâneos que controlam as taxas de infiltração e as estas influenciam no tempo e na distribuição espacial do escoamento superficial. No Capítulo 6, examinaremos a natureza dos padrões regionais de fluxo de água subterrânea em alguns detalhes e investigaremos as relações entre infiltração, recarga de água subterrânea, descarga de água subterrânea, fluxo de base e geração de fluxo. No Capítulo 7, veremos a evolução química da água subterrânea que acompanha sua passagem pela porção subsuperficial do ciclo hidrológico.

Sistemas de representação do ciclo hidrológico.
Figura 1.2 Sistemas de representação do ciclo hidrológico.

Antes de encerrar esta seção, vale a pena olhar para alguns dados que refletem a importância quantitativa das águas subterrâneas em relação a outros componentes do ciclo hidrológico. Nos últimos anos tem se prestado considerável atenção ao conceito de balanço hídrico mundial (Nace, 1971; Lvovitch, 1970; Sutcliffe, 1970) e a estimativa mais recente destes dados enfatiza a natureza oblíqua das águas subterrâneas na hidrosfera. Com referência à Tabela 1.1, se nós removermos da consideração os 94% da água da terra que resta nos oceanos e mares com níveis elevados de salinidade, então as águas subterrâneas representam dois terços dos recursos de água doce do mundo. Se nos limitarmos à consideração aos recursos de água doce utilizáveis (não se inclui as calotas e geleiras), as águas subterrâneas respondem por quase o volume total. Mesmo se considerarmos somente o regime mais ativo de águas subterrâneas que Lvovitch (1970) estima em 4 × 106 km3 (ao invés de 60 × 106 km3 da Tabela 1.1), a divisão de água doce chega a: água subterrânea 95%; lagos, pântanos, reservatórios e canais fluviais 3.5%; umidade do solo 1.5%.

Tabela 1.1 Estimativa do balanço hídrico no mundo

Parâmetro Área de Superficie (km2) × 106 Volume (km3) × 106 Volume (%) Produndidade Equivalente (m)* Tempo de Residência
Oceanos e Mares 361 1370 94 2500 ~4000 anos
Lagos e Reservatórios 1,55 0,13 <0,01 0,25 ~10 anos
Rios <0,1 <0,01 <0,01 0,007 1 – 10 anos
Pântanos <0,1 <0,01 <0,01 0,003 ~2 semanas
Solo Úmido 130 0,07 <0,01 0,13 2 semanas – 1 ano
Água Subterrânea 130 60 4 120 2 semanas – 10000 anos
Calota Polares e Geleiras 17,8 30 2 60 10 – 1000 anos
Água Atmosférica 504 0,01 <0,01 0,025 ~10 dias
Água Biosférica <0,1 <0,01 <0,01 0,001 ~1 semana
Fonte: Nace, 1971.
*Calculado como se o armazenamento fosse uniformemente distribuído sobre toda a superfície da Terra.

Esta superioridade volumétrica, entretanto, é atenuada pelos tempos médios de residência. A água de rios tem um tempo de giro na ordem de duas semanas. Águas subterrâneas por outro lado movem-se lentamente e seu tempo de residência em décadas, séculos e até mesmo milhares de anos não são incomuns. Os princípios estabelecidos no Capítulo 2 e as considerações sobre os fluxos regionais do Capítulo 6 irão esclarecer os controles hidrogeológicos sobre o movimento em larga escala das águas subterrâneas.

A maioria dos textos hidrológicos contém discussões detalhadas do ciclo hidrológico e do balanço de água global. Wisler & Brater (1959) e Linsley, Kohler & Paulhus (1975) são referências amplamente utilizadas para introdutórios textos hidrológicos. Um texto recente publicado por Eagleson (1970) atualiza a ciência em um nível mais avançado. O extenso Manual de Hidrologia Aplicada editado por Chow (1964a) é uma referência valiosa.

A história do desenvolvimento do pensamento hidrológico é um estudo interessante. Chow (1964b) fornece uma discussão concisa; o livro de estudo de Biswas (1970) fornece uma riqueza de detalhes das contribuições dos primeiros filósofos egípcios, gregos e romanos através do nascimento da hidrologia científica na Europa ocidental nos séculos XVIII e XIX.

Águas Subterrâneas como um Recurso

A primeira motivação para o estudo das águas subterrâneas tem tido tradicionalmente sua importância como um recurso. Para os Estados Unidos, a importância do papel das águas subterrâneas como componente do uso racional das águas pode ser obtida a partir dos estudos estatísticos do levantamento Geológico dos Estados Unidos, como relatado mais recentemente para o ano de 1970 por Murray &1950–1970 Reeves (1972) e resumido por Murray (1973).

A Tabela 1.2 documenta o crescimento da utilização da água nos Estados Unidos durante o período de 1950–1970. Em 1970 a nação usou 1400 × 106 m3/dia, sendo que destes 57% foi uso industrial e 35% irrigação. As águas superficiais corresponderam a 81% do total dos usos e as subterrâneas 19%. A Figura 1.3 ilustra o papel das águas subterrâneas em relação às águas superficiais nas quatro principais áreas de uso para o período de 1950–1970. As águas subterrâneas são menos importantes no uso industrial, mas fornece uma percentagem significativa da oferta para o uso doméstico, tanto rural como urbana, e também para a irrigação.

Os dados da Tabela 1.2 e Figura 1.3 obscurecem algumas variações regionais marcantes. Cerca de 80% do uso total da irrigação ocorre em 17 estados a oeste, enquanto que 84% da utilização industrial está concentrada nos estados a leste. As águas subterrâneas são mais amplamente utilizadas a oeste, onde é responsável por 46% do abastecimento público e 44% do uso industrial (ao contrário de 29% e 16% respectivamente, a leste).

Tabela 1.2 Uso da água nos Estados Unidos, 1950–1970

    m3/dia × 106* Percentual de uso em (1970)
1950 1955 1960 1965 1970
Consumo total de água 758 910 1023 1175 1400 100
Tipos de Consumo            
Abastecimento Público 53 64 80 91 102 7
Uso Rural 14 14 14 15 17 1
Uso na Irrigação 420 420 420 455 495 35
Uso Industrial 292 420 560 667 822 57
Fonte de Captação            
Água Subterrânea 130 182 190 227 262 19
Água Superficial 644 750 838 960 1150 81
Fonte: Murray, 1973.
*1 m3 = 103 L = 264 U.S. gal.

No Canadá o uso rural e municipal da água subterrânea foi estimado por Meyboom (1968) em 1,71 × 106 m3 dia, ou 20% do consumo total rural e municipal. O uso da água subterrânea é consideravelmente inferior ao dos Estados Unidos mesmo considerando-se a proporção populacional entre os dois países. Um exame mais detalhado mostra que o desenvolvimento rural do uso das águas subterrâneas no Canadá está  relativamente no mesmo nível que o desenvolvimento rural nos Estados Unidos, mas o uso municipal é significativamente menor. As diferenças mais marcantes estão no uso para irrigação e no uso industrial, onde o consumo total relativo de água no Canadá é muito menor do que nos Estados Unidos, e o componente de água subterrânea deste uso é extremamente pequeno.

Água Superficial (traço fino) e água subterrânea (pontilhada) uso nos Estados Unidos, 1950–1970 (depois de Murray, 1973).
Figura 1.3 Água Superficial (traço fino) e água subterrânea (pontilhada) uso nos Estados Unidos, 1950–1970 (depois de Murray, 1973).

McGuinness (1963), citando um comitê de estudo dos Estados Unidos, forneceu previsões futuras para  os requisitos nacionais de água nos Estados Unidos. Sugere-se que as necessidades de água irão chegar a 700 × 106 m3/dia by 1980 and 3360 × 106 m3/dia até o ano 2000. A obtenção destes níveis de produção representaria uma significativa aceleração da taxa de aumento do consumo de água delimitado na Tabela 1.2. O valor para o ano 2000 começa a aproximar-se do potencial total de recursos hídricos da nação, cuja estimativa é cerca de 4550 × 106 m3/dia. Se os requisitos forem cumpridos é amplamente aceito que os recursos de águas subterrâneas terão que fornecer uma maior proporção da oferta total. McGuiness observa que para as previsões acima se a contribuição percentual de água subterrânea aumentar de 19% para 33% o uso da água subterrânea teria que aumentar em relação aos atuais 262 × 106 m3/dia para 705 × 106 m3/dia em 1980 e 1120 × 106 m3/dia para o ano 2000. Ele observa que as propriedades desejáveis para águas subterrâneas como cor, pureza bacteriana, temperatura constante e qualidades químicas podem incentivar a necessidade de desenvolvimento em larga escala, mas alerta que a água subterrânea, especialmente quando grandes quantidades são solicitadas, é inerentemente mais difícil e dispendioso se localizar, avaliar, desenvolver e gerir se comparado as águas superficiais. Ele observa que a água subterrânea é uma fase integral do ciclo hidrológico. Considerar as águas subterrâneas e águas superficiais como dois recursos independentes faz parte do passado. Planejamento de recursos hídricos deve ser realizado com a constatação de que águas subterrâneas e águas superficiais tem a mesma origem.

No Capítulo 8, serão discutidas as técnicas de avaliação dos recursos hídricos subterrâneos: problemas geológicos da exploração do aquífero, métodos de campo e laboratório para medição de parâmetros e estimação, simulação do bom desempenho, produção do aquífero e exploração das águas subterrâneas em nível de bacia hidrográfica.

Contaminação das Águas Subterrâneas

Se as águas subterrâneas continuarem a desempenhar um papel importante no potencial de recursos hídricos no mundo, então terão que ser protegidas contra a crescente ameaça de contaminação subterrânea. O crescimento da população e da produção industrial e agrícola desde a segunda guerra mundial, juntamente com as crescentes exigências para o desenvolvimento energético, começaram pela primeira vez na história do homem a produzir quantidades de resíduos superiores às que o ambiente pode facilmente absorver. A escolha de um método de descarte de resíduos tornou-se um caso de escolher o jeito menos censurável a partir de um conjunto de alternativas questionáveis. Conforme ilustrado esquematicamente na Figura 1.4, não existem métodos de descarte de lixo em grande escala atualmente praticáveis que não tenham o potencial de grave poluição de alguma parte de nosso ambiente natural. Embora tenha havido uma crescente preocupação com a poluição do ar e da água superficial, esta ação ainda não englobou o ambiente subterrâneo. Na verdade, as pressões para reduzir a poluição superficial são em parte responsáveis pelo fato de que aqueles no campo de gerenciamento de resíduos estão começando a cobiçar o ambiente subterrâneo para o descarte de resíduos. Duas das técnicas de descarte que estão sendo utilizadas e que são vistas com mais otimismo para o futuro são a injeção de resíduos líquidos em poços profundos e utilização de aterro sanitário para descarte de resíduos sólidos. Ambas as técnicas podem levar à poluição subterrânea. Além disso, a poluição subterrânea pode ser causada por vazamento de lagoas que são largamente utilizadas como componentes de amplos sistemas de descarte de resíduos e por lixiviação de resíduos animais, fertilizantes e pesticidas utilizados na atividade agrícola.

No Capítulo 9, será abordado a análise da contaminação das águas subterrâneas. Será tratado os princípios e processos que nos permitem analisar os problemas gerais de disposição de resíduos municipais e industriais, bem como alguns problemas especiais associados às atividades agrícolas, derramamentos de petróleo, atividades de mineração e resíduos radioativos. Também será discutido a contaminação de água subterrânea devido a fonte costeira por intrusão salina. Em todos estes problemas, considerações físicas de fluxo de água subterrânea devem ser associados com as propriedades químicas e aos princípios introduzidos no Capítulo 3; e a associação deve ser realizada à luz dos conceitos de evolução geoquímica natural discutidos no Capítulo 7.

Espectro de alternativas de eliminación de residuos.
Figura 1.4 Espectro de alternativas de descarte de resíduos.

Água Subterrânea como um problema Geotécnico

A água subterrânea nem sempre é uma bênção. Durante a construção do túnel de San Jacinto, na Califórnia, a condução pelo túnel neste aqueduto de vários milhões de dólares foi obstruída durante muitos meses devido as inesperadas inundações de água subterrânea de um sistema altamente fraturado.

Na Cidade do México durante o período 1938–1970, houve subsidência de terrenos em várias partes da cidade, estas chegaram a 8,5 m. Recalques diferenciais ainda representam graves problemas para projetos de engenharia. A causa primária da subsidência é agora reconhecida como sendo a retirada excessiva de água subterrânea dos aquíferos.

Na barragem de Jerome, em Idaho, a barragem “falhou”, não por debilidade estrutural da própria barragem, mas pela simples razão de que a represa não seguraria a água. Os sistemas de fluxos de águas subterrâneas estabelecidos nas formações rochosas adjacentes ao reservatório forneceram vazamentos de tal eficiência que a represa teve de ser abandonada.

Na barragem de Revelstoke, na Columbia Britânica, vários anos de investigações geológicas exploratórias  foram realizados em um deslizamento de terra antigo que foi identificado no reservatório várias milhas acima do local da barragem. O receio estava na possibilidade de que o aumento das pressões da água subterrânea no deslizamento causado pelo represamento do reservatório pudesse reativar a instabilidade do talude. Um evento deste tipo causou quase 2.500 mortes em 1963, no infame desastre do reservatório Vaiont na Itália. Na cidade de Revelstoke, um programa massivo de drenagem foi realizado para assegurar que a experiência de Vaiont não fosse repetida.

No Capítulo 10 exploraremos a aplicação dos princípios do fluxo de água subterrânea para esses e outros tipos de problemas geotécnicos. Alguns dos problemas, como vazamento em barragens e entradas de água em túneis e minas a céu aberto, surgem como consequência de taxas excessivas e quantidades de fluxo de água subterrânea. Para outros, como a subsidência de terrenos e a instabilidade de taludes, a influência surge da presença de pressões excessivas de fluidos nas águas subterrâneas e não da taxa de fluxo propriamente dita. Em ambos os casos, a construção de rede de fluxos, a qual é introduzida no Capítulo 5, é uma poderosa ferramenta analítica.

Águas Subterrâneas e Processos Geológicos

Há poucos processos geológicos que não ocorrem na presença de água subterrânea. Por exemplo, existe uma estreita inter-relação entre os sistemas de fluxos de águas subterrâneas e o desenvolvimento geomorfológico de formas de relevo, quer seja pelos processos fluviais e processos glaciais ou pelo desenvolvimento natural do talude. A água subterrânea representa importante controle no desenvolvimento de ambientes cársticos.

A água subterrânea desempenha papel significativo na concentração de certos depósitos minerais economicamente importantes e na migração e acumulação de petróleo.

Talvez o papel geológico mais espetacular desempenhado pelas águas subterrâneas resida no controle que as pressões de fluidos exercem sobre os mecanismos de falha e de empurrão. Um interessante resultado desta interação é a sugestão de que pode ser possível controlar os terremotos em falhas ativas manipulando as pressões de fluido naturais nas zonas de falha.

No Capítulo 11, aprofundaremos o papel das águas subterrâneas como agente em vários processos geológicos.

1.2 Embasamentos Científicos para o Estudo de Águas Subterrâneas

O estudo de águas subterrâneas requer conhecimentos em diversos princípios básicos de geologia, física, química e matemática. Por exemplo, o fluxo de águas subterrâneas em um ambiente natural é fortemente dependente da configuração tridimensional dos depósitos geológicos  através dos quais ocorre esse fluxo. O especialista em águas subterrâneas  deve, portanto, possuir embasamento técnico e experiência na interpretação de evidências geológicas e facilidade em visualizar ambientes geológicos. O especialista também deve possuir experiência em sedimentação e estratigrafia e, ainda, uma boa compreensão dos processos que conduzem à deposição de estruturas ígneas vulcânicas e intrusivas. Também deve estar familiarizado com conceitos básicos da geologia estrutural, capazes de reconhecer e prever a influência de falhas e dobras em sistemas geológicos. É de considerável importância que, para o estudante de águas subterrâneas, o entendimento da natureza dos depósitos superficiais e formas de relevo sejam compreendidos. Uma grande proporção do fluxo de água subterrânea e uma porcentagem significativa de desenvolvimento de recursos hídricos subterrâneos ocorrem nos depósitos superficiais não consolidados, criados por processos geológicos fluviais, lacustres, glaciais, deltaicos e eólicos. Em dois terços do norte da América do Norte, a compreensão da ocorrência e fluxo das águas subterrâneas baseia-se quase integralmente na compreensão da geologia glacial dos depósitos do Pleistoceno.

A geologia nos fornece um conhecimento qualitativo da estrutura deste fluxo, entretanto, são a física e a química que fornecem as ferramentas para uma análise quantitativa. O fluxo de água subterrânea funciona como um campo condutor, como é o caso do calor e da eletricidade, e uma anterior exposição a esses campos mais clássicos são bons contribuintes para a análise do fluxo de águas subterrâneas. Em relação às diversas “leis” que convergem sobre a dinâmica deste fluxo, há uma em especial que é baseada em uma vertente específica da Física, mais conhecida como mecânica dos fluídos. Além de compreensões das propriedades básicas da mecânica dos fluidos e sedimentos, as habilidades com suas dimensões também ajudarão o aluno compreender com mais clareza a dinâmica das águas subterrâneas. O Apêndice I explana uma revisão dos elementos da mecânica dos fluidos. No caso do leitor não sentir facilidade com conceitos como densidade, pressão, energia, trabalho, estresse, é recomendável que prossiga primeiramente para o referido Apêndice, antes de avançar para o Capítulo 2. Caso sinta necessidade em aprofundar-se neste tema, mecânica dos fluidos, Streeter (1962) e Vennard (1961) são literaturas recomendadas; Albertson & Simons (1964) disponibilizam uma breve e útil recapitulação. Para temas específicos como fluxos de águas subterrâneas através de meios porosos, um maior aprofundamento pode ser encontrado nas literaturas de Scheidegger (1960) e Collins (1961), e especialmente em Bear (1972).

A análise da evolução natural da química e dos contaminantes nas águas subterrâneas requer um embasamento em princípios físico-químicos e também princípios relacionados à química inorgânica. Há muito tempo esses princípios têm feito parte da metodologia da geoquímica e, nas últimas décadas, tem se tornado comum em estudos relacionados a água subterrânea. Os isótopos estáveis e radioativos que ocorrem naturalmente neste ambiente, por exemplo, são utilizados para determinação da idade da água subterrânea.

A hidrologia das águas subterrâneas é uma ciência quantitativa, portanto não deveria haver surpresa ao descobrir que a matemática é a sua linguagem, ou pelo menos um do seus mais importantes dialetos. Seria quase impossível, e consideravelmente insensato, ignorar as ferramentas matemáticas para compreensão de sua dinâmica. Os métodos matemáticos nos quais os estudos clássicos de águas subterrâneas estão baseados foram emprestados pelos primeiros pesquisadores das áreas de matemática aplicada originalmente desenvolvida para o tratamento de problemas de fluxo de calor, eletricidade e magnetismo. Com o advento das tecnologias digitais e sua grande disponibilidade, muitos dos importantes estudos recentes basearam-se em abordagens matemáticas com conceitos muito diferentes, mais conhecidos como métodos numéricos. Embora neste texto nem os métodos analíticos clássicos nem os métodos numéricos sejam profundamente detalhados, a principal intenção foi incluir material introdutório suficiente para ilustrar alguns dos conceitos mais importantes.

Este texto não é certamente o primeiro a ser escrito sobre o tema de águas subterrâneas. Há muito material interessante em textos anteriores a este. Todd (1959) tem sido por muitos anos o texto introdutório de engenharia básico aplicado à hidrologia. Davis & De Wiest (1966) colocam uma ênfase muito maior na geologia. Para um texto totalmente comprometido com os aspectos de avaliação de recursos hídricos subterrâneos, não há melhores referências bibliográficas do que Walton (1970) e Kruseman & De Ridder (1970). Uma literatura mais recente, escrita por Domenico (1972), difere de seus predecessores na medida em que apresenta a teoria básica no contexto da modelagem de sistemas hidrológicos. Entre os melhores textos não norte-americanos estão os de Schoeller (1962), Bear, Zaslavsky & Irmay (1968), Custodio & Llamas (1974) e o tratado russo de Polubarinova-Kochina (1962). Há diversas outras ciências da terra que envolvem o fluxo de fluidos através de meios porosos. Existe uma estreita proximidade entre hidrologia de águas subterrâneas, física do solo, mecânica do solo, mecânica de rochas e engenharia de reservatórios de petróleo. Estudantes de águas subterrâneas encontrarão muito interesse em livros didáticos relacionados a essas áreas, como os de Baver, Gardner & Gardner (1972), Kirkham & Powers (1972), Scott (1963), Jaeger & Cook (1969) e Pirson (1958).

1.3 Embasamentos Técnicos para o Desenvolvimento de Recursos de Águas Subterrâneas

As duas primeiras seções deste capítulo fornecem uma introdução aos tópicos que planejamos abordar neste texto. É igualmente importante que seja estabelecido também o que não pretendemos abranger neste primeiro momento. Como a maioria das ciências aplicadas, o estudo das águas subterrâneas pode ser dividido em três grandes aspectos: ciência, engenharia e tecnologia. Este livro coloca uma grande ênfase sobre os princípios científicos; inclui muito a forma de análise associada à engenharia; não é de forma alguma um manual sobre tecnologia.

Em relação aos assuntos técnicos que não serão discutidos detalhadamente estão: métodos de perfuração; projeto, construção e manutenção de poços; levantamentos geofísicos e amostragem. Todos esses temas são conhecimentos necessários para embasamento do especialista pleno em águas subterrâneas, entretanto são tratados de forma mais aprofundada em outras literaturas específicas, além de serem aprendidas de melhor forma por meio da experiência prática do que por memorização mecânica.

Existem diversas bibliografias (Briggs & Fiedler, 1966; Gibson & Singer, 1971; Campbell & Lehr, 1973; U.S. Environmental Protection Agency, 1973a, 1976) que oferecem descrições técnicas sobre os vários tipos de equipamentos para perfuração de poços. Também contém informações sobre o projeto e configuração filtro, seleção e instalação de bombas e construção e manutenção de poços.

No tema de perfilagem geofísica, a maior referência na indústria do petróleo, onde surgiu a maior parte das técnicas, é Pirson (1963). Patten & Bennett (1963) discutem as várias técnicas, em especial sobre a exploração da água subterrânea. Faremos uma breve menção à perfuração e à perfilagem de poço no Capítulo 8.2, entretanto o leitor que se interessar por um grande número de exemplos de históricos de casos de avaliação de recursos de água subterrânea, deve dirigir-se a Walton (1970).

Há um outro aspecto do estudo da água subterrânea cujo teor é técnico, porém em um sentido diferente, não abordado neste texto. Referimo-nos ao tema da legislação de águas subterrâneas. O desenvolvimento e a gestão dos recursos hídricos subterrâneos devem ter lugar garantido na estrutura do direito das águas estabelecido pela legislação em vigor.  Essa legislação é geralmente estabelecida em nível federal e estadual, cujo resultado na América do Norte é uma colcha de retalhos de variadas tradições, direitos e estatudos. Piper (1960) e Dewsnut et al. (1973) avaliaram esse panorama nos Estados Unidos. Thomas (1958) chamou a atenção para alguns dos paradoxos que surgem dos conflitos entre a hidrologia e a legislação.

Leituras sugeridas

CHOW, V. T. 1964. Hydrology and its development. Handbook of Applied Hydrology, ed. V. T. Chow. McGraw-Hill, New York, pp. 1.1–1.22.

MCGUINNESS, C. L. 1963. The role of groundwater in the national water situation. U.S. Geol. Surv. Water-Supply Paper 1800.

MURRAY, C. R. 1973. Water use, consumption, and outlook in the U.S. in 1970. J. Amer. Water Works Assoc., 65, pp. 302–308.

NACE, R. L., ed. 1971. Scientific framework of world water balance. UNESCO Tech. Papers Hydrol., 7, 27 pp.