10.1 Poro-pressões, Escorregamentos e Estabilidade de Taludes
Escorregamentos sempre foram vistos pelo homem com um sentimento misto de fascinação e respeito. Junto com os terremotos e vulcões, eles representam um dos poucos fenômenos geológicos naturais que ocorrem com velocidade e intensidade capazes de afetar o curso da história humana. Neste item, será entendido que a água subterrânea desempenha um papel importante na geração de escorregamentos; no item 11.1 será visto que seu papel na geração de terremotos é conceitualmente semelhante.
Escorregamentos são de grande interesse, tanto para os geomorfólogos quanto para os geotécnicos. O interesse dos geomorfólogos é centrado no papel dos escorregamentos na evolução da paisagem. Para um engenheiro geotécnico, um grande escorregamento é simplesmente o evento extremo no espectro de riscos de estabilidade de taludes que ele precisa considerar num projeto de engenharia. Mais frequentemente, ele estará preocupado com a análise, em escala de detalhe, de taludes construídos pelo homem em projetos como cortes em obras viárias, barragens de terra ou minas a céu aberto.
Os conceitos e mecanismos de ruptura por trás da análise de estabilidade de taludes se aplicam tanto a encostas naturais quanto a taludes feitos pelo homem. Eles são igualmente válidos para escorregamentos grandes e potencialmente catastróficos ou para um simples deslizamento em um dique. A influência da água subterrânea, que é o foco central deste capítulo, é a mesma em todos os casos. Existem diferenças significativas entre a análise de taludes em solos e de taludes em rochas, e após uma revisão das técnicas básicas de equilíbrio-limite, o papel da água subterrânea é examinado separadamente para cada um desses dois ambientes geotécnicos.
Esta apresentação procura destilar a essência de uma vasta literatura. Muitos dos conceitos tiveram sua origem ou foram esclarecidos pela análise clássica de Terzaghi (1950) sobre mecanismos de escorregamentos. Um texto de Zaruba & Mencl (1969) enfatiza os aspectos de geologia de engenharia de grandes escorregamentos e outro de Carson & Kirby (1972) revisa as implicações geomorfológicas. Eckel (1958), Coates (1977) e Schuster & Krizek (no prelo) fornecem uma abrangente revisão da engenharia de estabilidade de taludes e um texto de Hoek & Bray (1974) enfatiza a engenharia de taludes rochosos. Textos clássicos de mecânica dos solos, como Terzaghi & Peck (1967), tratam do assunto em detalhe. Em toda a literatura, há um grande reconhecimento da importância da pressão de fluidos, mas esse reconhecimento nem sempre está associado ao entendimento atualizado dos prováveis padrões de fluxo subsuperficiais em regime permanente ou transitório nas encostas.
Adiante, será examinado os mecanismos de movimento em subsuperfície em feições planares.
Teoria de Ruptura de Mohr-Coulomb
Inicialmente, será considerado o critério de ruptura num plano de fraqueza bem definido em profundidade. Considere este plano [Figura 10.1 (a)] num campo regional de tensões, com a tensão principal máxima σ1 na direção vertical e a tensão principal mínima σ3 na direção horizontal. Calculando a tensão cisalhante τ e a tensão normal σ atuando no plano, na ausência de água, é possível pôr a Figura 10.1 (a) na forma do diagrama de corpo livre da Figura 10.1 (b). A tensão cisalhante nos planos paralelos às tensões principais é igual a zero e as condições de equilíbrio de forças nas direções horizontal e vertical são:
(10.1)
(10.2)
Solucionando as Eqs. (10.1) e (10.2) para σ e τ,
(10.3)
(10.4)
Relações trigonométricas conhecidas podem ser aplicadas às Eqs. (10.3) e (10.4) para produzir as formulações usuais do círculo de Mohr [Figura 10.1 (c)]:
(10.5)
(10.6)
A tensão cisalhante τ atuante no plano causará movimento apenas se superar a resistência ao cisalhamento Sτ do plano. A resistência ao cisalhamento é normalmente expressa em termos da lei empírica (ou critério) de ruptura de Mohr-Coulomb:
(10.7)
onde σ é a tensão normal ao plano de ruptura, como expresso pela Eq. (10.5), e c e ψ são duas propriedades mecânicas do material, sendo c a coesão (a resistência ao cisalhamento sob tensão confinante zero, ou seja, σ = 0) e ψ o ângulo de atrito interno.
A teoria de ruptura de Mohr-Coulomb também pode ser usada para descrever o mecanismo de ruptura de uma rocha ou solo que não possua um plano de ruptura pré-existente. Considere, por exemplo, uma célula padrão de ensaio triaxial, do tipo amplamente usado em mecânica de rochas e solos (Figura 10.2). Se uma amostra de solo, ou rocha, seca e homogênea é mantida a uma pressão confinante, S3, e submetida a uma pressão vertical, S1, então as tensões interna σ3 = S3 e σ1 = S1 serão estabelecidas dentro da amostra. Se S1 é aumentada, a amostra romperá a uma determinada tensão, σ1, e a um determinado ângulo, α. Se o ensaio for repetido para vários valores de tensão confinante, σ3, os pares de valores dos resultados experimentais de σ1 e σ3 nas rupturas podem ser plotados num diagrama de círculo de Mohr, tal como mostrado na Figura 10.1 (c). A Equação 10.7 será, então, a equação de uma envoltória de resistência que pode ser obtida experimentalmente para qualquer solo ou rocha. A relação entre o ângulo de ruptura, α, e o ângulo de atrito interno, ψ, pode ser determinada graficamente a partir da Figura 10.1 (c), uma vez que α = 45 ° – φ/2. Para análises de estabilidade de taludes em situações de campo, os valores de c e ψ para solos e rochas que compõem o talude devem ser medidos em laboratório, em células triaxiais, como asdescritas. Se a ruptura puder ser prevista para um tipo específico de superfície, como um plano de juntas numa rocha fraturada, os valores de c e ψ deverão corresponder à interface rocha-rocha e deverão ser medidos numa amostra que inclua tal feição. Se o solo ou rocha forem livres de planos de ruptura incipiente, os valores de c e ψ deverão ser medidos em amostras homogêneas. Como se observa na Figura 10.1 (c), maiores valores de c e ψ correspondem a maiores valores de resistência ao cisalhamento e menor probabilidade de ruptura. Para areias e rochas fraturadas, c e a resistência do material resulta quase totalmente do termo ψ. Para argilas, ψ e a resistência se deve quase que totalmente à coesão.
Nos parágrafos precedentes descreveu-se o mecanismo de ruptura em solos e rochas secos. O interesse primordial reside em materiais que estão saturados com água subterrânea. Se o plano pré-existente ou incipiente de ruptura contém água, e se a água estiver submetida a uma pressão de fluido, p, será necessário invocar o princípio da tensão efetiva. A tensão normal total, σ, na Figura 10.1 (b) deverá ser substituída pela tensão efetiva σe = σp. A lei de ruptura será, então:
(10.8)
onde c’ e ψ’ correspondem às propriedades mecânicas de coesão e ângulo de atrito interno determinadas para condições saturadas, em um ensaio triaxial drenado. No ensaio drenado, a água expelida da amostra, sob influência de uma pressão vertical crescente, é drenada para a atmosfera, como na Figura 10.2. Se a drenagem não for permitida, a pressão do fluido, p, deve ser monitorada na célula e σ1 = S1 – p e σ3 = S3 – p. A Equação (10.8) expressa claramente que um incremento na pressão de fluido tende a diminuir a resistência ao cisalhamento nos planos de ruptura.
Métodos do Equilíbrio Limite na Análise de Estabilidade de Taludes
Considere a condição de tensão em um solo homogêneo sem planos de fraqueza preexistentes. Próximo à superfície de um terreno plano [Figura 10.3 (a)], a direção da tensão principal máxima σ1 (devido ao peso do material sobreposto) é vertical e a direção da tensão principal mínima σ3 é horizontal. Por outro lado, nas proximidades do talude, a distribuição da tensão se torna distorcida, como apresentado na Figura 10.3 (b). Como mostrado, uma consequência deste padrão de tensões é que os planos de ruptura incipientes, orientados a α = 45 ° – φ/2, a partir da direção de σ3, são curvos. Na mecânica dos solos, estes planos possíveis de ruptura são chamados de círculos de deslizamento ou superfície de deslizamento. A abordagem do equilíbrio-limite na análise da estabilidade de taludes envolve a seleção arbitrária de um conjunto de várias superfícies de deslizamento para um determinado talude. Para cada superfície de deslizamento é feita uma análise de equilíbrio usando o critério de ruptura de Mohr-Coulomb e um fator de segurança, Fs, é calculado, definido como a razão entre a resistência ao cisalhamento e a tensão de cisalhamento na superfície de deslizamento. Se Fs > 1, o talude é considerado estável no que diz respeito àquela superfície de deslizamento. A superfície de deslizamento com o menor valor de Fs é considerada como um plano de ruptura incipiente. Se Fs ≤ 1 na a superfície crítica, a ruptura é iminente.
Considere um solo argiloso homogêneo, isotrópico, no qual o ângulo de atrito interno se aproxima de zero. Em tais casos, a resistência ao cisalhamento do solo se deve apenas à sua coesão, c, e o critério de Mohr-Coulomb [Eq.(10.7)] se torna simplesmente Sτ = c. Para solos assim, a superfície de deslizamento pode se aproximar de um círculo [Figura 10.4 (a)]. O fator de segurança será dado pela razão entre os momentos resistentes e os momentos estabilizadores que atuam no ponto O. A força instabilizadora é simplesmente o peso W do escorregamento potencial e a força de resistência é a força coesiva c atuando ao longo do comprimento l entre os pontos A e B. Para este simples caso.
(10.9)
Para situações mais complexas é necessário um método mais sofisticado de análise, como o método convencional das fatias. Este pode ser aplicado para superfícies de deslizamento de geometria irregular e em casos onde e ψ (ou c’ e ψ’) variam ao longo da superfície de deslizamento. Este método também invoca o princípio da tensão efetiva, por considerar a redução da resistência do solo ao longo da superfície de deslizamento devido às pressões de fluido (ou poro-pressões, como usualmente denominado na literatura sobre estabilidade de taludes) que ocorrem em taludes saturados.
Para o método convencional, o escorregamento é dividido em uma série de fatias verticais. A Figura 10.4 (b) apresenta a geometria de uma fatia individual e a Figura 10.4 (c) indica as condições de equilíbrio de forças e de equilíbrio de tensões existentes no ponto C na superfície de deslizamento na base da fatia. Em C, a tensão de cisalhamento é (W sin θ)/l e a resistência ao cisalhamento Sτ é dada, como antes, por:
(10.10)
Para σ = (W cos θ)/l, a Equação (10.10) se torna:
(10.11)
e o fator de segurança é dado por:
(10.12)
O método convencional das fatias foi aprimorado por Bishop (1955), que reconheceu a necessidade de se considerar as tensões verticais e horizontais produzidas nas bordas das fatias causadas pelas interações entre uma fatia e outra. A equação resultante para Fs é um pouco mais complicada que a Equação (10.12), mas assume a mesma forma. [Carson & Kirkby (1912) apresentam uma simples derivação.] Bishop & Morgenstern (1960) produziram uma série de tabelas e gráficos para simplificar a aplicação do método das fatias de Bishop. Morgenstern & Price (1965) generalizaram ainda mais a abordagem de Bishop, e sua técnica para taludes irregulares e superfícies de deslizamento em meios não homogêneos foi amplamente computadorizada. Os códigos computacionais que realizam a rotina de análise de problemas de estabilidade de taludes são amplamente utilizados nos dias atuais.
Para aplicar o método do equilíbrio limite em um determinado talude, seja via computador ou manualmente, a abordagem básica é medir c’ e ψ’ para o material do talude, calcular W, l, θ e p para as várias fatias, e calcular o Fs para as várias superfícies de deslizamento em análise.
Dentre todos os dados necessários, provavelmente o mais sensível é a poro-pressão, p, ao longo dos planos potenciais de escorregamento. Se as questões econômicas permitirem, pode ser possível a instalação de piezômetros no talude até a profundidade prevista para o plano de ruptura. As cargas hidráulicas medidas, h, podem então ser convertidas em poro-pressões pela relação usual:
(10.13)
onde z é a elevação da entrada de água do piezômetro. Em muitos casos, entretanto, não é viável a instrumentação de campo, cabendo ser reexaminada a hidrogeologia dos taludes à luz das necessidades da análise de estabilidade de taludes.
O Efeito das Condições Hidrogeológicas na Estabilidade de Taludes de Solo
As cargas hidráulicas (e poro-pressões) nos taludes refletem as condições de fluxo subterrâneo, estacionário ou transitório, que ali existem. Das considerações feitas no Capítulo 6, deve ser claro que se estimativas razoáveis da configuração do nível d’água e da distribuição de tipos de solo pudessem ser feitas, seria possível prever a distribuição de poro-pressões ao longo de uma superfície de deslizamento potencial via construção de redes de fluxo ou com a ajuda de simulação analógica, numérica ou analítica.
Patton & Hendron (1974) observaram que análises geotécnicas de estabilidade de taludes, frequentemente, apresentam distribuições de poro-pressão incorretas, tais como aquelas que surgem no caso estático [Figura 10.5 (a)], ou numa rede de fluxo do tipo “barragem de terra” [Figura 10.5 (b)], que raramente ocorrem em encostas naturais. Um padrão de fluxo estacionário mais realista para materiais isotrópicos e homogêneos seria o da Figura 10.5 (c). Para taludes e configurações de nível d’água mais complexos, ou para configurações de solo mais complexas, as várias técnicas de construção de redes de fluxo em regime estacionário discutidas no Capítulo 5, incluindo aquelas que consideram a face de percolação, estão à disposição do engenheiro geotécnico. Para um talude com fator de segurança próximo a 1, as diferenças entre as distribuições de poro-pressão, que podem surgir como resultado da escolha dentre os diversos sistemas de fluxo em encostas da Figura 10.5, podem bem determinar se a análise resultará em condições de estabilidade ou de ruptura.
Se uma rede de fluxo estacionário for a alternativa escolhida para prever a distribuição de poro-pressão em uma análise de estabilidade de taludes, ela deverá ser construída considerando o cenário mais crítico, que corresponde ao nível freático na posição mais elevada possível. Para taludes, onde pouco se sabe sobre a configuração do nível d’água, o caminho mais conservador é assumir o nível freático coincidente com a superfície do terreno.
Existem casos em que uma rede de fluxo local do tipo mostrado na Figura 10.5 (c), mesmo com o nível freático na superfície do terreno, irá subestimar as poro-pressões no talude. Se o talude do projeto encontra-se na base de uma encosta muito mais longa em um vale profundo, por exemplo, toda a encosta pode fazer parte de uma área de descarga regional e poro-pressões anomalamente altas pode ocorrer ali. Considerações sobre o fluxo regional de água subterrânea tornam-se pertinentes para a análise de estabilidade de taludes nestes casos.
Na Seção 6.5, foi aprendido que os sistemas hidrológicos subterrâneos em encostas raramente são simples e raramente ocorrem em regime estacionário. A resposta hidrológica de uma encosta à precipitação, por exemplo, envolve uma interação complexa, transitória, saturada-insaturada que, normalmente, leva a uma elevação do nível freático, ainda que seja difícil de prever. A extensão e duração da elevação e o intervalo de tempo entre o evento de precipitação e a elevação do nível d’água resultante podem variar enormemente, dependendo da configuração da encosta, da intensidade e duração da chuva, das condições iniciais de umidade e das propriedades hidrogeológicas saturadas e insaturadas dos materiais das encostas
Considere a encosta na Figura 10.6 (a). Elevações do nível d’água durante o período t0, t1, t2, . . ., devido à precipitação R, irão provocar um aumento de poro-pressões pc em função do tempo no ponto C da superfície de deslizamento potencial [Figura 10.6 (b)].
Se a poro-pressão aumenta ao longo de todo o comprimento da superfície de deslizamento, tal como aconteceria numa pequena encosta durante uma precipitação generalizada, o fator de segurança Fs diminuirá com o tempo [Figura 10.6 (c)]. No momento em que Fs se torna menor que um, a ruptura ocorrerá. É fato comum, frequentemente observado (Terzarghi, 1950), que as rupturas de encosta ocorrem durante a estação chuvosa, ou após eventos de precipitação intensa ou de degelo. O mecanismo deflagrador dessas rupturas é o aumento da poro-pressão ao longo dos planos potenciais de ruptura.
Efeito das Condições da Água Subterrânea na Estabilidade de Taludes em Rochas
Para efeitos de análise da estabilidade de taludes, pode-se dividir as encostas de rocha em três categorias: (1) aquelas constituídas de rocha maciça, (2) aquelas com um número pequeno e finito de juntas que se interceptam e (3) aquelas que constituem maciços rochosos intensamente fraturados. A primeira destas – rocha maciça – é rara, e de qualquer forma, a maioria dos textos de mecânica das rochas indica que paredes rochosas verticais extremamente altas são possíveis na ausência de juntas e fraturas (veja, por exemplo, Jaeger, 1972). Obviamente, as pressões de fluidos não podem desempenhar um papel importante na estabilidade das encostas de rocha maciça.
A análise da estabilidade de taludes para o terceiro caso, a de um maciço rochoso intensamente fraturado, não é significativamente diferente da análise para solos. É possível definir superfícies circulares potenciais de deslizamento neste tipo de talude, e a abordagem usual de redes de fluxo para a previsão de poro-pressões nestas superfícies são válidas.
Restaram as encostas de rocha que possuem um pequeno número de superfícies de ruptura preferenciais devido a um padrão de fraturamento bem desenvolvido, mas relativamente espaçado. A análise da estabilidade de taludes neste tipo de ambiente geológico tem sido objeto de muitas pesquisas recentes no campo da mecânica de rochas (Jaeger, 1971; John, 1968; Londe et al., 1969; Patton & Hendron, 1974; Hoek & Bray, 1974). Como exemplo, considere a simples ruptura potencial em cunha da Figura 10.7. O bloco de rocha sob análise é limitado por uma junta basal com resistência ao cisalhamento dependente dos valores c’ e ψ’ da superfície planar e por uma trinca vertical de tração sem resistência ao cisalhamento. Se um “sistema de fluxo” estacionário existe neste simples sistema de fraturas, será um no qual a altura da água na trinca de tração permanecerá no nível mostrado e a superfície da junta permanecerá saturada (presumivelmente na presença de uma pequena nascente descarregando com alguma vazão Q no ponto onde a junta intercepta o talude). As distribuições de poro-pressão serão como as mostradas na figura e as forças resultantes de poro-pressão que atuam contra a estabilidade da cunha de rocha são aquelas apresentadas como U e V. Hoek & Bray (1974) calculam o fator de segurança para casos deste tipo pela relação:
(10.14)
O principal interesse reside na natureza das distribuições de poro-pressão em taludes de rochas desse tipo e como os sistemas de fluxo de água subterrânea diferem nestes taludes com relação aos taludes em solo de geometria comparável. Patton & Deere (1971) fazem duas importantes observações a este respeito. Primeiro, sugerem que se poderia esperar distribuições de poro-pressão muito irregulares em taludes fraturados [Figura 10.8 (a)] sob influência de feições estruturais individuais. Segundo, observam que as porosidades das rochas fraturadas são extremamente pequenas (0–10%) em comparação com as dos solos (20–50%). Isso leva a flutuações grandes e rápidas do nível d’água em taludes fraturados [Figura 10.8 (b)] em resposta a eventos de precipitação ou degelo. Os aumentos de poro-pressão são mais altos nos taludes em rochas do que nos taludes em solo para uma dada precipitação, e a capacidade potencial de eventos de precipitação como mecanismos deflagradores de rupturas é, portanto, maior nos taludes em rocha. Lumb (1975) e Bjerrum & Jorstad (1964) apresentam resultados estatísticos que mostram uma alta correlação entre eventos de infiltração e rupturas de taludes em rochas intemperizadas e não intemperizadas.
Falhas são feições estruturais que podem estar presentes em taludes de rochas e, hidrologicamente, podem desempenhar muitos papéis. As falhas que desenvolveram zonas espessas de rochas cisalhadas e cataclasadas e com pouco material de preenchimento (gouge) podem ser altamente permeáveis, enquanto aquelas que possuem uma camada fina (mas contínua) de gouge podem formar barreiras quase impermeáveis. A Figura 10.8 (c) ilustra esquematicamente o efeito de duas possíveis configurações de falha na posição do nível d’água (e, portanto, na distribuição da poro-pressão em planos de deslizamento potenciais) em um talude rochoso.
Sharp, Maini & Harper (1972) realizaram simulações numéricas de fluxo subterrâneo em taludes rochosos homogêneos, intensamente fraturados, que possuem anisotropia nos seus valores de condutividade hidráulica. Taludes estratificados horizontalmente, em que a direção principal da anisotropia é horizontal, não desenvolvem poro-pressões tão grandes como em taludes onde a estratificação e a direção principal de anisotropia têm mergulho paralelo à face da encosta. A divergência muito grande no resultado da distribuição da carga hidráulica que eles apresentam entre os dois casos ilustram a importância de um entendimento detalhado do regime hidrogeológico de um talude para fins de análise de sua estabilidade.
Hodge & Freeze (1977) apresentaram várias simulações com elementos finitos de distribuições de carga hidráulica em ambientes geológicos regionais que são propensos a grandes rupturas de estabilidade de taludes. A Figura 10.9 mostra o padrão de distribuição de carga hidráulica de uma falha de empurrão em uma sequência sedimentar hipotética que é comum na Western Cordillera (Deere & Patton, 1967). As altas poro-pressões indicadas pela linha potenciométrica na base da unidade A levam a um fator de segurança baixo para o talude sobrejacente inclinado conforme o mergulho.
10.2 Água Subterrânea e Barragens
É seguro, provavelmente, dizer que poucos projetos de engenharia têm mais capacidade para atiçar a mente dos homens do que a concepção e construção de uma grande barragem. Na profissão de engenharia, há a excitação que um empreendimento de engenharia integrado e de porte naturalmente suscita. As tarefas habituais de assegurar a acurácia técnica dos cálculos de engenharia e de avaliar as ramificações econômicas das decisões de engenharia assumem uma importância especial quando envolvem o represamento de um rio. Fora da profissão, na sociedade em geral, paixões similares são despertadas. Podem ser aquelas de apoio – para melhoria de um sistema de abastecimento de água, ou de energia mais barata, ou a segurança de um novo sistema de controle de enchentes – ou podem ser aquelas de preocupação – para o potencial impacto causado pela invasão do homem no ambiente natural.
As preocupações da engenharia são, geralmente, centradas no local da barragem, e na primeira parte desta seção será visto o papel das águas subterrâneas nos aspectos de engenharia do projeto de barragens. As preocupações ambientais são mais frequentemente associadas ao reservatório e, na parte posterior da seção, examinaremos as interações ambientais que ocorrem entre um reservatório artificialmente represado e o regime hidrológico regional.
Tipos de Barragens e Rupturas de Barragens
Duas barragens não são exatamente iguais. Barragens individuais diferem em suas dimensões, projetos e finalidades. Elas diferem na natureza do local que ocupam e no tamanho do reservatório que represam. Uma óbvia classificação inicial separaria grandes barragens de uso múltiplo, pequenas em número, mas de grande impacto, do número muito maior de estruturas menores, tais como barragens de rejeitos, ensecadeiras, muros de contenção de inundações e vertedouros de transbordamento. Nesta apresentação, o papel das águas subterrâneas é examinado no contexto das grandes barragens, mas os princípios são igualmente aplicáveis às estruturas menores.
Krynine & Judd (1957) classificam grandes barragens em quatro categorias: barragens de gravidade, barragens de lajes e contrafortes, barragens em arco e barragens de terra, e barragens de enrocamento. As três primeiras representam estruturas de concreto impermeável que não permitem a percolação da água através delas ou acúmulo de poro-pressões dentro delas. Estas três são diferenciadas com base na sua geometria e pelos mecanismos através dos quais elas transferem as cargas de água para suas fundações. Uma barragem de gravidade possui um eixo que se estende através de um vale de uma ombreira a outra em uma linha reta, ou muito próximo disto. Sua seção transversal estrutural é maciça, geralmente trapezoidal, mas aproximando-se de um triângulo em alguns casos. Uma barragem de laje e contraforte tem uma seção transversal consideravelmente mais fina que uma barragem de gravidade, mas que é sustentada por um conjunto de contrafortes verticais alinhados perpendicularmente ao eixo da barragem. Uma barragem em arco tem um eixo curvo, com face convexa para montante. Nos casos mais espetaculares, sua seção pode ser um pouco maior que uma muro de concreto reforçado, frequentemente com menos que 6 m de espessura. Em uma barragem de gravidade, a carga hidráulica é transmitida para as fundações através da própria barragem; em uma barragem de contrafortes, a carga é transmitida pelos contrafortes; e em uma barragem em arco, a carga é transmitida para as ombreiras de rocha pela ação compressiva do arco. Todos os três tipos de barragens de concreto devem ser fundados na rocha, e o papel da água subsuperficial é, portanto, limitado ao fluxo de águas subterrâneas e ao desenvolvimento de poro-pressões que podem ocorrer nas rochas das ombreiras e das fundações.
Na primeira metade do século XX, a maioria das grandes barragens foi construída com concreto em fundações rochosas. No entanto, nos últimos anos, como os melhores locais para construção de barragens se esgotaram e com a mudança da relação econômica entre custos de construção com concreto e de movimentação de terra, houve uma mudança brusca no sentido de se construir barragens de terra e de enrocamento. Estas barragens derivam sua estabilidade de uma seção transversal maciça e, como resultado, elas podem ser construídas em quase qualquer local, em fundações de rocha ou solo. Do ponto de vista hidrológico, a propriedade primária que diferencia barragens de terra de barragens de concreto é que elas são permeáveis até certo ponto. Elas permitem um fluxo limitado de água através de sua seção transversal e permitem o desenvolvimento de poro-pressões dentro de seu corpo.
Existem, basicamente, cinco eventos que podem levar a uma ruptura catastrófica da barragem: (1) galgamento da barragem por uma onda de inundação devido à capacidade insuficiente dos vertedores, (2) movimento dentro das fundações ou ombreiras de rochas em planos de fraqueza geológica, (3) desenvolvimento de grandes subpressões na base da barragem, (4) erosão por piping no pé da barragem, e (5) rupturas de taludes na face a montante ou a jusante da barragem. Os três primeiros desses mecanismos de ruptura podem ocorrer tanto em barragens de concreto como de terra; os dois últimos são limitados às barragens de terra e de enrocamento.
Há também um sexto modo de ruptura – vazamento excessivo do reservatório – que raramente é catastrófico, mas que representa uma falha tão séria no projeto quanto qualquer um dos cinco primeiros. Naturalmente, o vazamento pelas rochas da fundação da represa sempre ocorre em algum grau, e nas represas de terra, há sempre algum vazamento pela própria barragem. Essas perdas são, geralmente, cuidadosamente analisadas durante o projeto de uma barragem. As perdas inesperadas ocorrem mais frequentemente pelas rochas das ombreiras ou do reservatório em algum ponto distante da represa. Há mesmo alguns casos históricos (Krynine & Judd, 1957) com vazamentos tão excessivos que impossibilitaram a retenção de água pelas barragens. Os engenheiros precisam de métodos de previsão para as taxas de vazamento, grandes ou pequenas, porque as taxas são uma parte importante do balanço hidrológico onde se baseiam as análises de custo-benefício de barragens.
A presença de água subterrânea é uma característica típica em locais de barragens. Dos seis modos de ruptura listados, as águas subterrâneas desempenham um papel importante em cinco deles – ruptura geológica, ruptura por subpressão, rupturas por piping, ruptura de taludes e rupturas por percolação. Nos próximos itens, serão examinados com mais detalhes os vários mecanismos de ruptura, olhando para algumas das características de projeto que são incorporadas em barragens para fornecer salvaguardas contra rupturas. Para a primeira seção, que trata de represas de concreto sobre fundações de rocha, Jaeger (1972), Krynine & Judd (1957) e Legget (1962) fornecem textos de referência úteis. Para as discussões que tratam de barragens de terra e enrocamento, os textos de especialidade de Sherard et al. (1963) e Cedergren (1967) são inestimáveis. Um livro de Wahlstrom (1974) sobre técnicas de exploração de locais de barragens contém muito material de interesse hidrogeológico.
Percolação em Barragens de Concreto
Para examinar os mecanismos de ruptura nos planos geológicos de fraqueza, considere a seção transversal da Figura 10.10 (a) através de uma barragem de gravidade de concreto, impermeável e sua fundação rochosa subjacente. Se a elevação do nível do reservatório no lado montante da barragem é h1 e a elevação de água à jusante da barragem for h2, uma rede de fluxo em estado estacionário pode ser construída no semi-espaço infinito com base nas condições de fronteira h = h1 em AB, h = h2 em CD, e BC impermeável. A rede de fluxo mostrada na Figura 10.10 (a) é para um meio homogêneo e isotrópico. As cargas hidráulicas, as cargas de pressão e a pressão dos fluídos (e poro-pressões) que existem em qualquer ponto do sistema são independentes da condutividade hidráulica do meio, embora as velocidades de fluxo e os taxas de percolação dependam obviamente deste parâmetro.
Deve ficar claro que as cargas hidráulicas e as pressões dos poros em qualquer ponto E serão maiores após o enchimento do reservatório do que eram antes da construção da barragem, e que eles serão ainda maiores quando o reservatório estiver no nível máximo de operação do que quando o reservatório estiver em níveis inferiores. Se existe um plano preexistente de fraqueza geológica (falha, zona de cisalhamento ou plano de juntas principal) passando pelo ponto E, as discussões da Seção 10.1 se aplicam. As poro-pressões mais altas em E irão reduzir a resistência ao cisalhamento no plano e a resistência a deslocamentos potenciais. A barragem de arco de Malpasset, perto de Frejus, na França, é o exemplo clássico de uma ruptura de barragem, em dezembro de 1959 (Jaeger, 1972), desencadeada por pequenos movimentos num plano de fraqueza nas rochas da fundação sob a barragem. No desastre de Malpasset, mais de 400 pessoas foram mortas e grande parte da cidade de Frejus foi destruída.
A abordagem de rede de fluxo também pode ser utilizada para examinar as subpressões na base de uma barragem. Dados os valores da carga hidráulica da rede de fluxo, pode-se calcular as pressões de fluido ao longo da linha BC na Figura 10.10 (a) a partir da relação usual p = ρ g(h – z). As elevações de todos os pontos em BC são idênticas, o gradiente de pressão de fluidos ao longo de BC será o mesmo que para a carga hidráulica. Na Figura 10.10 (b), a natureza das subpressões na base da barragem e a força resultante U são ilustradas esquematicamente.
Para analisar a estabilidade da barragem contra deslizamento, seria também necessário considerar as cargas de água P1 and P2 e o peso W da barragem. O critério de ruptura de Mohr Coulomb, ou qualquer outro critério que descreve a resistência devido ao atrito ao movimento ao longo do contato basal entre a barragem e sua fundação, poderia então ser usado para calcular um fator de segurança. Escorregamentos de barragens de concreto são raramente o resultado de uma avaliação incorreta de P1, P2 ou W. Eles são, geralmente, o resultado de subpressões inesperadas nas rochas de fundação. A ruptura na barragem de St. Francis perto de Saugus, Califórnia, em março de 1928, levou a 236 mortes e vários milhões de dólares de danos materiais (Krynine & Judd, 1957). A causa primária da ruptura foi o amolecimento e desintegração de uma formação conglomerática que compunha as rochas de fundação de uma ombreira, mas as águas percolantes constituíram um agente erosivo primário, e as subpressões podem também ter contribuído para o acidente.
Impermeabilização e Drenagem das Fundações de Barragens
A impermeabilização das formações rochosas é, provavelmente, mais uma arte do que uma ciência. É, entretanto, uma arte que é baseada no entendimento das propriedades hidrogeológicas da rocha e da natureza do fluxo da água subterrânea nos sítios de barragens. O termo impermeabilização (grouting), se refere à injeção de um agente selante nas porções mais permeáveis das rochas da fundação. Normalmente, o impermeabilizante é uma mistura de cimento puro e água, em uma proporção de cimento/água de 1:7 até 1:10. Algumas misturas contêm cal, argila ou asfalto, e nos últimos anos têm sido utilizados selantes químicos. Na maioria dos casos, a feição permeável que está sendo impermeabilizada é um sistema de juntas que existe na fundação rochosa da barragem. Em outros casos, um programa de impermeabilização pode objetivar o tratamento de zonas de falhas, cavidades de dissolução, ou horizontes de alta permeabilidade em rochas sedimentares ou vulcânicas.
A impermeabilização é executada por três razões: (1) para reduzir o vazamento sob a barragem, (2) para reduzir subpressões e (3) para fortalecer a fundação em rochas fraturadas. Para estes fins, há dois tipos de impermeabilização utilizados na maioria dos sítios de barragens: impermeabilização de consolidação e cortina de impermeabilização. O propósito da impermeabilização de consolidação do maciço rochoso é fortalecer as rochas da fundação. Isto é feito com a injeção sob baixas pressões em furos rasos, com o objetivo de selar as maiores fendas e aberturas. Na barragem Norris, no Tennessee, que tem sua fundação em calcários e dolomitos (Krynine & Judd, 1957), foi feita a consolidação do maciço rochoso em furos de 7–15 m de profundidade dispostos em uma grade centrada de 1–3 m abaixo de toda a estrutura.
A cortina de impermeabilização é projetada para reduzir tanto o vazamento quanto às subpressões. A cimentação é feita com altas pressões de injeção em furos com até 100 m de profundidade. A cortina é usualmente criada em uma linha de furos simples ou dupla localizada sob a porção à montante da barragem e alinhados paralelamente ao eixo da barragem. É frequentemente utilizado o método split-spacing, com injeção inicial partir de furos a cada 8 m, por exemplo; posteriormente, os furos são inseridos em centros de 4 m, 2 m e até 1 m. São realizados testes em piezômetros em furos secundários e terciários antes da injeção para testar a eficiência da impermeabilização já feita. Nas operações de impermeabilização, geralmente, são especificadas as entradas mínimas admissíveis do agente selante e as pressões máximas de injeção. Em alguns casos, a impermeabilização é feita até que haja uma injeção nula (“recusa” de impermeabilização). As pressões de injeção devem ser limitadas para evitar a elevação superficial da rocha, surgências na superfície e enfraquecimento das rochas da fundação.
Não há dúvidas que uma cortina de impermeabilização eficaz reduz a percolação sob uma barragem, mas existe uma considerável controvérsia sobre o papel da cortina de injeção na redução de subpressões. A Figura 10.1 (a) mostra a rede de fluxo sob uma barragem de concreto sobre uma fundação de rochas homogêneas e isotrópicas, limitadas por uma formação impermeável na base. As subpressões ao longo da linha AB na base da barragem estão apresentadas esquematicamente nos gráficos à direita. Se uma cortina de impermeabilização vertical é construída [Figura 10.1 (b)], a rede de fluxo é consideravelmente alterada e, em teoria, o perfil de subpressão ao longo de AB é significativamente reduzido.
Entretanto, Casagrande (1961) apontou que a eficiência teórica sugerida pela Figura 10.11 (b) raramente é constatada. Primeiramente, não é possível desenvolver uma cortina que reduza a condutividade hidráulica a zero ao longo de seu comprimento; e, em segundo lugar, a geometria da cortina mostrada na Figura 10.11 (b) é um tanto enganadora em relação à escala. A Figura 10.11 (c) apresenta a rede de fluxo que deveria existir para uma cortina com uma condutividade hidráulica de um décimo da rocha não cimentada; a Figura 10.11 (d) mostra a rede de fluxo que existiria para uma zona impermeabilizada com as dimensões mais coerentes com as barragens usuais. A redução da subpressão, em ambos os casos, é significativamente menor do que a mostrada na Figura 10.11 (b). Casagrande observa que as subpressões são atualmente mais efetivamente reduzidas pela drenagem [Figura 10.11 (e)]. Entretanto, a presença de um dreno induz a uma fuga maior ainda do reservatório do que ocorreria em condições naturais. É prática comum o uso integrado de uma cortina impermeabilizante para reduzir a percolação atrás de uma cortina para reduzir as subpressões.
O projeto hidrelétrico Grand Rapids, em Manitoba, representa um caso histórico de impermeabilização inigualável (Grice, 1968; Rettie & Patterson, 1963). O projeto envolveu 25 km de diques de terra, formando um reservatório com uma área maior do que 5.000 km2, em uma região sobre dolomitos altamente fraturados. A cortina de impermeabilização atingiu até 70 m de profundidade a partir de furos espaçados menos de 2 m entre si em todo o comprimento dos diques. Grice (1968) observa que a cortina de cimento reduziu a percolação através da formação impermeabilizada em 83%, mas induziu fluxos maiores através da rocha não impermeabilizada subjacente. Ele estima que o programa de impermeabilização reduziu a fuga do reservatório em 63%.
Percolação em Fluxo Estacionário Através de Barragens de Terra
Rupturas de barragens de terra e de enrocamento podem ser resultantes de percolação excessiva, de pipings pelo pé da barragem, ou de instabilizações do talude de jusante da barragem. Todos os três podem ser analisados com a ajuda de redes de fluxo em regime estacionário. Para as raras situações onde uma barragem de terra é construída sobre uma formação impermeável [Figura 10.12 (a)], a rede de fluxo pode se limitar à barragem propriamente dita. Onde os materiais da fundação são também permeáveis [Figura 10.12 (b)], a rede de fluxo deve incluir todo o sistema barragem-fundação.
Quando se reconhece que a seção transversal de uma barragem constitui um regime de fluxo saturado e não saturado, não é comum na análise de engenharia considerar a porção não saturada do sistema. A abordagem de superfície livre salientada na Seção 5.5 e na Figura 5.14 é quase que universalmente empregada. Na Figura 10.13, o fluxo é assumido como concentrado na porção saturada ABEFA. A superfície freática BE é assumida como uma linha de fluxo. As cargas especificada são h = h1 em AB e h = z na face de exfiltração EF. A posição do ponto de saída deve ser determinada por tentativa e erro. As redes de fluxo da Figura 10.12 exemplificam o tipo de rede de fluxo resultante. Os textos de engenharia sobre percolação de água subterrânea, como Harr (1962) e Cedergren (1967), fornecem muitos exemplos de redes de fluxo em barragens de terra.
Considerem, agora, a questão do piping. O mecanismo de piping pode ser explicado em termos de forças que existem num grão individual de solo num meio poroso durante o fluxo. O fluxo de água pelo grão de solo ocorre em resposta a um gradiente de energia. (Relembre da Seção 2.2 que o potencial hidráulico foi definido em termos de energia por unidade de massa do fluido percolante). Uma medida desse gradiente é fornecida pela diferença de carga hidráulica h entre as faces jusante e montante do grão. A força que age no grão devido à diferença de carga é conhecida como força de percolação. Ela é exercida na direção de fluxo e pode ser calculada (Cedergreen, 1967) pela expressão:
(10.15)
Onde A é a área da seção transversal do grão e é a massa específica da água. Se multiplicar a Eq. (10.15) por Δz/Δz e tratar A como a área da seção transversal que engloba muitos grãos, tem-se a expressão para a força de percolação durante o fluxo vertical por um volume unitário do meio poroso com V = A Δz = 1. Colocando a expressão resultante em forma diferencial:
(10.16)
A força de percolação é, portanto, diretamente proporcional ao gradiente hidráulico ∂h/∂z. Em áreas com fluxo descendente de água subterrânea, as forças de percolação agem na mesma direção das forças gravitacionais, mas em áreas com fluxos ascendentes, elas se opõem às forças gravitacionais. Se a força de percolação ascendente em qualquer ponto de descarga de um sistema de fluxo [(digamos, no ponto A na Figura 10.12 (b)] excede a força gravitacional descendente, o piping irá ocorrer. Grãos de solo serão carreados pelo fluxo de percolação e a barragem será solapada.
A força gravitacional descendente é devido ao peso submerso do meio poroso saturado. Um solo com uma massa específica ρS = 2,0 g/cm3 tem uma massa submersa (ρb = ρS – ρ) que é quase exatamente igual a massa específica da água, ρ = 1,0 g/cm3. Para este muito característico valor de ρS, a força de percolação excederá a força gravitacional para todos os gradientes hidráulicos superiores a 1,0. Um teste simples para o piping é, portanto, examinar a rede de fluxo para um projeto proposto de barragem e calcular o gradiente hidráulico em todos os pontos de descarga. Se houver gradientes nestes pontos que se aproximam de 1,0, uma melhoria no projeto é necessária.
Um modo final de ruptura no caso de piping é usualmente a instabilização de taludes na face de jusante. A instabilização de taludes pode também ocorrer lá se a poro-pressão criada perto da face pelo sistema de fluxo interno for grande demais. O método do equilíbrio-limite para a análise de estabilidade de taludes, introduzido na seção prévia, é tão aplicável para barragens de terra como para taludes.
Para evitar as condições hidráulicas que levam ao piping ou a instabilização de taludes em barragens de terra, os projetistas de barragem podem incorporar muitas feições diferentes no projeto. As Figuras 10.14(a) e (b) ilustram como um sistema interno de drenagem ou um dreno de pé podem servir para reduzir as cargas hidráulicas no talude de jusante de uma barragem de terra. A Figura 10.14 (c) ilustra uma barragem zonada com um espaldar de jusante cinco vezes mais permeável do que o núcleo central. Uma consequência desta configuração é um ponto de percolação de água na face de jusante mais baixo. Se o contraste entre o núcleo e o material no espaldar for ainda maior, e se um sistema de drenagem for incorporado, [Figura 10.14 (d)], a análise de fluxo interno se reduz apenas à análise de fluxo através do núcleo. O material do espaldar e o dreno agem como se fossem infinitamente permeáveis. A Figura 10.14 (e) mostra a influência de um trincheira de vedação parcial, com prolongamento para baixo do núcleo impermeável, no fluxo por um um material de fundação permeável. O prolongamento desta trincheira de vedação até a fronteira basal da camada de fundação permeável seria ainda mais efetivo.
Fluxo Estacionário por Barragens de Terra
As instabilizações na face de montante de uma barragem de terra são, geralmente, o resultado de rebaixamentos rápidos do nível de um reservatório. No nível máximo de operação do reservatório, os efeitos de altas poro-pressões na face são compensados pelo peso da água sobrejacente do reservatório. Após um rápido rebaixamento de nível, as poro-pressões elevadas permanecem, mas o suporte foi removido. Se a dissipação transitória destas poro-pressões ocorrer rapidamente, isto é, se a drenagem transitória da face da barragem for rápida, instabilizações podem se desenvolver na superfície de deslizamento crítica com consequentes escorregamentos do talude. A Figura 10.15 (a) é uma ilustração esquemática da resposta transitória para a redução rápida de nível em uma barragem de terra não-zonada. A Figura 10.15 (b) mostra a natureza da segurança oferecida contra esse tipo de ruptura pela presença de um material de alta permeabilidade no espaldar.
Freeze (1971a) afirmou que o fluxo transitório em barragens de terra é um processo saturado-insaturado; e, especialmente no caso de núcleos de argila, o regime de fluxo pode ser altamente dependente das propriedades hidráulicas insaturadas do material utilizado no maciço. No entanto, não é comum na prática de engenharia investigar as propriedades insaturadas dos materiais utilizados, de modo que as abordagens de superfície livre de De Wiest (1962) e Dicker (1969), que consideram apenas o fluxo saturado, são de grande importância prática na análise de percolações transitórias através de barragens de terra.
Há um outro mecanismo de ruptura em barragens de terra que apresenta implicações transitórias, que é a detonação de movimentos de massa por liquefação devido a terremotos.
Cedergren (1967) observa que a máxima segurança contra a liquefação é proporcionada por barragens com as menores zonas de saturação no espaldar de jusante. Conclui que toda barragem deve ser bem drenada, nem que seja para apenas melhorar a estabilidade durante sismos.
Impactos Hidrogeológicos em Reservatórios
O enchimento de um reservatório a montante de uma barragem pode ter um impacto significativo em vários sistemas ambientais existentes na bacia hidrográfica. O regime hidrológico é afetado de maneira mais direta: os padrões de escoamento são influenciados à montante e à jusante do reservatório, e vazões são alteradas no tempo e no espaço. Um novo reservatório também gera uma forte readequação do regime de erosão-sedimentação na bacia hidrográfica. A carga de sedimentos à montante é armazenada no reservatório e a erosão à jusante é ampliada. Estas consequências ambientais foram reconhecidas desde os primeiros dias de construções de barragens, porém, só recentemente os ecologistas têm sido capazes de documentar um impacto provavelmente de maior importância. É agora evidente que os reservatórios frequentemente causam perturbações alarmantes numa variedade de ecossistemas, incluindo aqueles relacionados aos peixes e à vida selvagem e peixes e nos padrões de vegetação. Em muitos casos, a natureza do reajuste ecológico é controlada pela disponibilidade de água, e isso, por sua vez, depende, em certa medida, das mudanças que foram induzidas no regime hidrogeológico.
A construção de um reservatório em um vale que atua como uma área de descarga regional produz tanto reajustes transitórios como mudanças permanentes e de longo prazo no sistema hidrológico adjacente ao reservatório. Durante a subida inicial do nível do reservatório, um sistema de fluxo transitório é induzido nas margens do reservatório. À medida que as áreas limítrofes do reservatório são preenchidas, há uma reversão na direção do fluxo e ocorre um influxo da água do reservatório para o sistema de águas subterrâneas. O mecanismo é idêntico ao de armazenamento de água nas margens dos córregos durante inundações (Secção 6.6). Para reservatórios que podem ter dezenas ou centenas de milhares de quilômetros de comprimento e os aumentos do nível da água que podem ser de 30 m ou mais, a significância quantitativa destes processos de fluxo transitório pode ser considerável.
O resultado final do reajustamento transitório inicial é um conjunto de mudanças permanentes e de longo prazo no regime hidrogeológico regional. Eleva-se o nível das superfícies freáticas, as cargas hidráulicas aumentam nos aquíferos, e as taxas de descarga do sistema de fluxo subsuperficial na direção do vale é reduzido. Se as elevações da superfície freática antes do represamento forem baixas, um aumento da superfície freática regional pode ser benéfica, na medida que a melhoria das condições de umidade em solos próximos da superfície podem auxiliar na produção agrícola. Por outro lado, se os níveis da superfície freática já estiverem próximos da superfície, a influência pode ser prejudicial. Os solos podem ficar encharcados, e existe a possibilidade da salinização do solo por meio do aumento da evaporação. Em aquíferos mais profundos, o aumento das cargas hidráulicas reduzirá as alturas de bombeamento e em situações raras pode causar artesianismo em poços que, anteriormente, tinham níveis estáticos abaixo da superfície do solo.
As análises preliminares que conduzem a um projeto de reservatório devem incluir previsões do impacto hidrogeológico. Os métodos preditivos de simulação de uso corrente foram adaptados a partir dos métodos de análise do armazenamento nas margens. A resposta transitória inicial do nível freático pode ser modelada com um modelo saturado baseado nos pressupostos de Dupuit-Forchheimer (Hornberger et al., 1970), ou com uma análise saturada-insaturada mais complexa (Verma & Brutsaert, 1970). Aumentos transitórios na carga hidráulica em um aquífero confinado hidraulicamente conectado podem ser previstos com a porção subsuperficial do modelo acoplado de interação fluxo-aquífero de Pinder & Sauer (1971). Todos estes métodos requerem o conhecimento das taxas de flutuação do nível do reservatório e as propriedades hidrogeológicas saturada e/ou insaturada das formações geológicas das vizinhanças do reservatório. Métodos semelhantes podem ser usados para prever a resposta hidrogeológica às flutuações operacionais no nível do reservatório. Esta aplicação tem muito em comum com a avaliação do fluxo transitório através de barragens de terra, como discutido anteriormente nesta seção.
Uma vez que o nível operacional de um reservatório foi atingido, as flutuações sazonais e operacionais no nível d´água são relativamente pequenas em comparação com a subida inicial, e os efeitos transitórios tornam-se menos importantes. A previsão de mudanças permanentes e de longo prazo no regime hidrogeológico pode ser feita com um modelo estacionário, onde a carga hidráulica na fronteira do reservatório é tomada como o nível de operação máximo do reservatório. As simulações podem ser feitas em seções verticais bidimensionais verticais alinhadas ortogonalmente ao eixo do reservatório, ou em seções horizontais bidimensionais através de aquíferos específicos. As soluções são normalmente obtidas numericamente com a ajuda de um computador (Remson et al., 1965), ou com modelos análogos do tipo descrito na Secção 5.2 (van Everdingen, 1968a).
Se a presença de um reservatório influencia o ambiente hidrogeológico, este também influencia um reservatório. Aos olhos de um projetista de uma barragem, a questão da interação é enquadrada no último sentido. Em adição a questão primária do suprimento hidrológico e a questão secundária da sedimentação no reservatório, os projetistas de barragens devem considerar três possíveis problemas geotécnicos em conexão com o projeto do reservatório: (1) vazamento do reservatório em outros pontos que não da própria barragem, (2) estabilidade dos taludes marginais aos reservatórios, e (3) geração de sismos. Cada um desses fenômenos é influenciado pelas condições da água subterrânea, ou diretamente ou via efeitos de poro-pressão.
O vazamento de reservatórios em pontos afastados da barragem não é incomum. Foi um problema recorrente em várias barragens construídas em terrenos de calcários pela Agência do Vale do Tennessee durante a primeira metade do século XX.
A estabilidade dos taludes marginais aos reservatórios, particularmente sob condições de variação dos níveis de água, é um aspecto importante do projeto da barragem. Isso tem sido especialmente verdadeiro desde o espectacular rompimento do reservatório Vaiont, na Itália, em 1963. Nesse local, um enorme escorregamento atingiu o reservatório, envolvendo 200–300 milhões de m3 de material, criando uma onda de 250 m de altura, que galgou a barragem e inundou com 300 milhões de m3 de água o vale à jusante. Jaeger (1972) relata que quase 2.500 vidas foram perdidas neste desastre.
O enchimento de um reservatório também altera as condições de tensão em profundidade. A carga de água do reservatório aumenta as tensões totais, e este efeito, junto com o aumento da pressão do fluido provocado pelo reajustamento hidrogeológico, influencia as tensões efetivas em profundidade. Carder (1970) documenta um grande número de casos históricos onde o represamento causou atividade sísmica.
10.3 Entrada de Água Subterrânea em Túneis
Provavelmente, não há projeto de engenharia que exija um casamento mais compatível entre geologia e engenharia do que a construção de um túnel. Considerações sobre a litologia local e regional, estratigrafia e sobre estrutura geológica influenciam não somente a escolha das rotas, mas também os métodos de escavação e de suporte. Um texto de Wahlstrom (1973) salienta a história e o desenvolvimento da escavação de túneis e enfatiza o papel da geologia no seu planejamento. Krynine & Judd (1957) e Legget (1962) fornecem discussões informativas, mas menos detalhadas de escavação de túneis no contexto de um tratamento global da geologia de engenharia.
A literatura sobre túneis contém referências a muitos casos históricos em diversos ambientes geológicos, mas enquanto a litologia, a estratigrafia e a estrutura variam de caso para caso, há uma feição que é notadamente comum. Caso após caso, o principal problema geotécnico encontrado durante a construção de túneis envolveu o afluxo de água subterrânea. Algumas das experiências mais desastrosas na escavação de túneis foram o resultado da intercepção de grandes fluxos de água provenientes de rochas altamente fraturadas e saturadas de água. Os especialistas em túneis de todo o mundo sabem que no planejamento de um túnel é primordial identificar a natureza das condições das águas subterrâneas a serem encontradas.
Se os fluxos de água subterrânea forem antecipadamente previstos, é possível criar sistemas de drenagem adequados. Onde os túneis podem ser construídos em aclive, o próprio túnel funcionará como um sistema de drenagem primária. Porém, onde os túneis devem ser escavados em declive ou de uma frente de escavação a partir de um eixo, são necessárias instalações de drenagem mais complexas, envolvendo bombas e tubulações. Em ambos os casos, as exigências de projeto tornam importante a previsão correta das quantidades e as taxas de entrada de água que possam ocorrer no túnel. Em alguns casos, provou-se possível reduzir os afluxos de água subterrânea com impermeabilização com caldas de cimento, mas esta abordagem raramente é válida quando ocorrem afluxos muito grandes e inesperados.
Nesta seção, primeiro será examinado o papel que um túnel desempenha no sistema hidrogeológico regional. Nas subseções seguintes, serão descritos dois casos históricos, e serão vistos alguns métodos de análise preditiva.
Um Túnel como Dreno em Estado Estacionário ou Transitório
De maneira geral, um túnel funciona como um dreno. Considere, para fins ilustrativos, um túnel infinitamente longo em um meio poroso, isotrópico e homogêneo. Se a carga de pressão nas paredes do túnel é considerada como atmosférica e se o nível freático é mantido à elevação constante, uma rede de fluxo em regime estacionário do tipo mostrado na Figura 10.16 (a) pode ser construída. Se a condutividade hidráulica do meio é conhecida, a taxa de entrada das águas subterrâneas Q0 por unidade de comprimento do túnel pode ser calculada a partir da análise quantitativa de redes de fluxo.
De fato, mesmo se formações geológicas fossem heterogêneas e anisotrópicas, uma análise da redes de fluxo, embora um pouco mais complicada, poderia fornecer as taxas de entrada de água em regime estacionário, considerando que os valores necessários de condutividade hidráulica pudessem ser determinados para as diversas formações.
A abordagem em estado estacionário é válida desde que a superfície freática não seja rebaixada pelo túnel. No entanto, para formações rochosas com porosidade e armazenamento específico baixos, é improvável que o regime estacionário se mantenha por muito tempo na presença de um túnel. É mais provável [Figura 10.16 (b)] que um sistema de fluxo transitório se desenvolverá com o rebaixamento do nível freático acima do túnel. Nesse caso, a taxa inicial de entrada em estado estacionário Q0 por unidade de comprimento do túnel diminuirá em função do tempo.
Se as condições geológicas forem sempre simples e um túnel infinitamente longo pudesse ser instantaneamente escavado, o cálculo dos afluxos seria uma questão simples. Infelizmente, a geologia ao longo de um túnel é raramente tão homogênea quanto o uso das seções transversais bidimensionais da Figura 10.16 iria implicar. Geralmente, há uma sequência alternada de formações mais permeáveis e menos permeáveis, e os afluxos ao longo de um túnel são raramente constantes no espaço, muito menos no tempo. Muitas vezes, são afluxos extremos, provenientes de uma zona de permeabilidade alta, pequena e inesperada, que leva às maiores dificuldades. Depósitos de areia e cascalho não consolidados e de estratos sedimentares permeáveis, como arenito ou calcário, podem levar a problemas de água. Mais frequentemente, há feições secundárias e muito localizadas, como cavidades de solução e zonas de fratura associadas a falhas ou a outras feições estruturais, que levam aos maiores influxos na face.
Em suma, então, os escavadores de túneis devem estar preparados para lidar com dois tipos principais de afluxos de águas subterrâneas: (1) afluxos regionais ao longo da linha do túnel e (2) afluxos catastróficos na face. O primeiro tipo pode normalmente ser analisado com uma rede de fluxo em regime estacionário. Os fluxos são relativamente pequenos e diminuem lentamente com o tempo. Geralmente, é possível planejá-los com sistemas de drenagem de túneis. Fluxos do segundo tipo são muito difíceis de prever. Eles podem ser muito grandes, mas diminuem rapidamente com o tempo. É difícil projetar sistemas de drenagem econômicos para eles, que geram um risco acentuado se o túnel estiver em declive ou a partir de uma frente fechada. Fluxos superiores a 1.000 ℓ/s foram registrados nas frentes de escavação de vários túneis durante a sua construção (Goodman et al., 1965).
Riscos Hidrogeológicos na Escavação de Túneis
Grandes entradas de água subterrânea nos túneis são, por vezes, associadas a altas temperaturas e gases nocivos. Temperaturas altas, geralmente, ocorrem em túneis profundos sob influência do gradiente geotérmico, ou em áreas de atividade vulcânica ou sísmica recente. Gases explosivos, como o metano, ocorrem em carvões e folhelhos, e a indústria de mineração de carvão, há muito tempo, aprendeu a respeitar o seu poder. Na escavação de túneis, no entanto, geralmente, é difícil antecipar sua ocorrência.
Na construção do túnel Tecolate (Trefzger, 1966), todos os principais perigos ocorreram juntos, tornando-se um estudo de caso clássico de campo. O túnel Tecolate foi construído através das montanhas de Santa Inês, 19 quilômetros a noroeste de Santa Barbara, Califórnia, durante o período 1950–1955. Tem 10,3 km de comprimento e 2,1 m de diâmetro. É um aqueduto que transporta água de um reservatório de abastecimento para a região metropolitana de Santa Bárbara. O túnel penetra numa sequência de folhelhos mal consolidados, siltitos, arenitos e conglomerados, e cruza uma falha principal e outras várias menores. As principais entradas de água subterrânea foram encontradas com temperaturas variando entre 11 e 41 °C na face. Os maiores influxos na face atingiram 580 ℓ/s a temperaturas de até 40 °C. Um fluxo de 180 ℓ/s atrasou a construção por 16 meses e resistiu a todas as tentativas de impermeabilização. Todos os afluxos vieram de siltitos e arenitos intensamente fraturados. Acredita-se que as altas temperaturas foram devidas ao calor residual provenientes de falhas geológicas recentes. Para lidar com as condições quase insuportáveis no túnel, os trabalhadores trafegavam em carros de minas imersos até os pescoços em água fria.
O túnel de São Jacinto, perto de Banning, Califórnia (Thompson, 1966), é um componente do aqueduto do rio Colorado, que leva a água da bacia do Colorado para a área de Los Angeles. Os estudos geológicos de pré-construção levaram à conclusão de que o tipo de rocha predominante seria um granito maciço. Apesar de alguma indicação de falhamento ter sido constatada, ninguém visualizou os enormes volumes de água que mais tarde se verificaram associadas a estas características estruturais.
O túnel foi escavado a partir de dois emboques a partir de um shaft central. Com o túnel escavado apenas cerca de 50 m deste shaft, um grande fluxo de água, estimado em 480 ℓ/s, surgiu na frente da escavação acompanhada por mais de 760 m3 de detritos de rocha. As seções do túnel a leste e a oeste do shaft foram logo inundadas e a água, ao final, encheu o eixo de 250 m até 45 m da superfície.
A fonte da água era uma zona de falha fraturada com uma configuração particularmente difícil. A zona de falha era limitada no plano de falha por uma fina camada de argila plástica impermeável. A zona com água ocorria na teto da falha fortemente fraturada. A frente inicial do túnel interceptou a falha na parte superior do plano, gerando um afluxo catastrófico. Um mapeamento subsequente localizou 21 falhas ao longo da linha do túnel, cada uma com a mesma “estratigrafia” interna, assim como a falha original. A experiência subsequente na escavação do túnel mostrou que as frentes de avanço que se aproximam às zonas de falhas a partir do lado do teto de falha ainda encontram grandes afluxos de água subterrânea, mas ao interceptar menores fluxos em seguida, dispersando o fluxo total numa área maior e num tempo mais longo, evitaram-se afluxos catastróficos de água.
Análise Preditiva das Entradas de Água Subterrânea em Túneis
Se os construtores de túnel tiverem que tratar de forma segura e eficiente com grandes afluxos de água subterrânea, os hidrogeólogos e engenheiros geotécnicos terão de desenvolver métodos mais confiáveis de análise preditiva. As únicas análises teóricas que podemos encontrar na literatura para a previsão de afluências de águas subterrâneas em túneis são as de Goodman et al. (1965). Elas representam um excelente ataque inicial ao problema, mas estão longe de ser o trabalho derradeiro sobre o assunto. Eles mostram que para o caso de um túnel de raio r atuando como um dreno estacionário [Figura 10.16 (a)] em um meio isotrópico e homogêneo, com condutividade hidráulica K, a taxa de entrada de água subterrânea Q0 por unidade de comprimento do túnel é dada por:
(10.17)
A análise para o caso transitório [Figura 10.16 (b)] mostra a taxa cumulativa do fluxo Q(t) por unidade de comprimento do túnel a qualquer momento t após o término do fluxo constante é dada por:
(10.18)
onde K é a condutividade hidráulica do meio, Sy a vazão específica e C é uma constante arbitrária. O desenvolvimento da Eq. (10.18), entretanto, é baseado num conjunto muito restrito de hipóteses. A equação assume que o nível freático apresenta forma parabólica e que a hipótese de fluxo horizontal de Dupuit-Forchheimer se aplica. Adicionalmente, a Eq. (10.18) é somente válida para condições de fluxo que surgem depois que o declínio do nível freático alcançou o túnel, isto é, após t3 na Figura 10.16 (b). Com base da teoria de Dupuit-Forchheimer, a constante C da Eq. (10.18) deve ser 0,5, mas Goodman et al. (1965), com base em estudos de modelagem laboratorial, constataram que um valor mais adequado aproximava-se de 0,75. A Equação (10.18) pode ser aplicável para estimativas de entradas de água de projeto da ordem de magnitude, mas deveriam ser usadas com boa dose de ceticismo.
Para ambientes hidrogeológicos mais complexos que não podem ser representados por configurações mais idealizadas da Figura 10.16, modelos matemáticos numéricos podem ser preparados para cada caso específico. Goodman et al. (1965) apresentam uma análise transitória para a previsão de entradas de água na face de uma zona vertical com água. Wittke et al. (1972) descrevem a aplicação de modelos de elementos finitos para uma linha de túneis em rochas fraturadas. Esta análise é baseada na abordagem descontínua de fluxo em rochas fraturadas (Seção 2.12), em vez de uma abordagem de meio contínuo seguida por Goodman et al. (1965).
São considerados, nesta seção, apenas aqueles problemas de água subterrânea que surgem durante a construção de um túnel. Se o túnel for construído para transportar água, e se a água ficar sob pressão, há considerações de projeto que são influenciadas pela interação entre o fluxo pelo túnel e o fluxo da água subterrânea durante a operação. Se o túnel não for revestido, deve ser feita uma análise das perdas d’água que ocorrerão para o sistema de fluxo regional sob influência das altas cargas hidráulicas que serão induzidas nas rochas na fronteira do túnel. Se o túnel for revestido, o projeto deve levar em consideração as pressões que serão exercidas na parte externa do revestimento pelo sistema de água subterrânea quando o túnel estiver vazio.
Para estas finalidades, redes de fluxo em regime estacionário e transitório podem, mais uma vez, serem usadas vantajosamente. Para um tratamento mais detalhado de aspectos de projeto, o leitor deve procurar textos de geologia de engenharia e de mecânica das rochas, como os de Krynine & Judd (1957) ou Jaeger (1972).
10.4 Afluxo de Água Subterrânea para Dentro de Escavações
Em qualquer escavação de engenharia que necessite ser executada abaixo do nível d’água irá ocorrer afluxo de água subterrânea. As taxas do afluxo dependerão do tamanho e profundidade da escavação, e das propriedades hidrogeológicas dos solos ou rochas que estão sendo escavados. Em áreas onde as formações de solos ou rochas possuem baixas condutividades hidráulicas, somente afluxos pequenos irão ocorrer, e estes geralmente podem ser facilmente controlados por bombeamento de um poço ou trincheira coletora. Em tais casos, uma análise hidrogeológica sofisticada raramente é necessária. Em outros casos, particularmente em siltes ou areias, o desaguamento de escavações pode tornar-se um significativo aspecto da construção e projeto.
Sistemas de drenagem também servem a outros propósitos, além de rebaixar o nível d’água e interceptar a percolação. Eles reduzem subpressões e gradientes hidráulicos elevados na base de uma escavação, provendo assim proteção contra soerguimento da base e piping. Uma escavação drenada também leva a redução das poro-pressões nos seus taludes de modo a melhorar sua estabilidade. No projeto de minas com cavas a céu aberto, este é um fator de alguma importância; se a redução das poro-pressões possibilitar um aumento na declividade do talude de cava projetado, mesmo que em apenas 1 °, a economia criada pela redução da escavação pode ser de muitos milhões de dólares.
Drenagem e Desaguamento de Escavações
O controle do afluxo da água subterrânea para dentro de escavações pode ser feito de várias formas. Sharp (no prelo) lista os seguintes métodos como sendo de uso amplo e atual: (1) drenos horizontais profundos; (2) poços verticais perfurados atrás da crista ou das bancadas na face do talude; (3) galerias de drenagem atrás do talude, com ou sem furos de drenagem radiais perfurados a partir da galeria; e (4) trincheiras de drenagem construídas abaixo ou ao longo da face do talude. A Figura 10.17 ilustra esquematicamente como as três primeiras técnicas podem ser efetivas no rebaixamento do nível d’água no entorno da escavação.
Drenos horizontais constituem o método de drenagem mais barato, rápido e mais flexível. Piteau & Peckover (no prelo) fornecem muitas sugestões práticas para seu projeto e implantação em taludes de rocha. Galerias ou poços são mais caros, mas eles têm a vantagem de não interferir nos trabalhos na face do talude. O desaguamento pode ser feito com estes métodos antes de cortar o terreno, de modo que a escavação pode ser executada a seco. O projeto de um sistema de desaguamento baseado em um padrão de poços de bombeamento ou de ponteiras filtrantes deve ser baseado nos princípios apresentados na Seção 8.3 para sistemas de poços múltiplos. O cone de rebaixamento do nível d’água na escavação é criado pela interferência mútua entre os cones de rebaixamento individuais de cada poço ou de ponteiras filtrantes. Transmissividades e coeficientes de armazenamento são, geralmente, determinados nas primeiras instalações e o projeto do restante do sistema é baseado nesses valores. Briggs & Fiedler (1966) e Cedergren (1975) apresentam uma discussão detalhada dos aspectos práticos de sistemas de desaguamento. O rebaixamento máximo alcançado com um estágio de ponteiras filtrantes é de cerca de 5 m, na prática. Algumas escavações profundas têm sido desaguadas com mais de oito estágios de ponteiras filtrantes.
Vogwill (1976) apresenta um excelente caso histórico de problemas de desaguamento numa mineração a céu aberto. Em Pine Point, nos Territórios do Noroeste do Canadá, minérios de chumbo e zinco são minerados numa série de cavas em um complexo de recife dolomítico devoniano. Neste caso, as transmissividades estão na faixa de 0,005 – 0,01 m2/s e o desaguamento, feito por poços de bombeamento, deve remover entre 60 e 950 ℓ/s de várias cavas. Vogwill conclui que o aumento da necessidade de desaguamento e seus custos poderia levar a uma situação no futuro onde a programação e as previsões da mineração serão determinadas inteiramente pelos requisitos de desaguamento das cavas a céu aberto.
O realinhamento do canal de Welland, no Sul de Ontário, apresenta um caso histórico de desaguamento de um tipo diferente. O canal de Welland atravessa a península do Niagara entre o Lago Erie e o Lago Ontário. É uma ligação chave na rota de navegação dos Grandes Lagos. Um realinhamento de uma porção do canal em 1968 envolveu a escavação de cerca de 13 km do novo canal. O projeto requereu a despressurização permanente do aquífero regional em duas áreas para reduzir riscos de soerguimento do terreno e de ruptura de taludes e para o deságue temporário de algumas porções do canal durante a escavação.
Farvolden & Nunan (1970) e Frind (1970) discutem os aspectos hidrogeológicos do programa de desaguamento. O aquífero principal na área é uma fina zona de dolomitos fraturados encontrada na superfície do embasamento, imediatamente abaixo de 20–30 m de depósitos glaciais e lacustres inconsolidados e de baixa permeabilidade. Foram realizadas perfurações e amostragem extensivas ao longo do eixo do novo canal e piezômetros foram instalados em vários locais, tanto nos depósitos superficiais como no embasamento. Testes de bombeamento executados no aquífero dolomítico para determinar seus parâmetros mostraram transmissividades variando amplamente, e valores tão altos quanto 0,015 m2/s não foram incomuns. Estas altas transmissividades tiveram implicações positivas e negativas para o projeto. No lado positivo, elas possibilitaram o desaguamento de toda a área de construção com somente quatro centros de bombeamento. No lado negativo, elas levaram a uma extensa propagação dos cones de rebaixamento no aquífero, que é amplamente explorado por poços privados, municipais e industriais. Uma simulação numérica do aquífero foi realizada, para fins preditivos, e uma das principais metas foi determinar a responsabilidade de rebaixamentos em áreas de interferências mútuas. Os resultados das simulações mostraram que taxas de bombeamento de aproximadamente 100 ℓ/s proporcionariam o rebaixamento necessário de 10 m ao longo da rota de realinhamento. A simulação também mostrou que um cone de rebaixamento elíptico afetaria os níveis d’água até a 12 km do canal.
Análise Preditiva do Afluxo de Água Subterrânea para Dentro de Escavações
O desenvolvimento de métodos quantitativos de análise da previsão do fluxo de água subterrânea para dentro de escavações tem ficado aquém de seu desenvolvimento em muitos outros problemas na hidrologia de águas subterrâneas aplicada. Os únicos métodos analíticos conhecidos pelos autores são adaptações de métodos para a previsão de hidrogramas de entrada de água para reservatórios superficiais de grandes aquíferos não confinados. Brutsaert e seu colaboradores têm analisado o problema apresentado usando cada uma das abordagens esquematicamente ilustradas na Figura 5.14. Verma & Brutsaert (1971) resolveram o problema numericamente como um problema bidimensional, saturado, de superfície livre; e, analiticamente, como um problema unidimensional, saturado, simplificado pelo uso das hipóteses de Dupuit. A metodologia preditiva da Figura 10.18 é baseada em estudo prévio (Ibrahim & Brutsaert, 1965) desenvolvido num modelo de laboratório. Os resultados foram, posteriormente, confirmados pelos modelos matemáticos de Verma & Brutsaert (1970, 1971).
A Figura 10.18 (a) mostra a geometria da seção vertical bidimensional em análise. Ela tem relevância para a previsão do afluxo de água subterrânea dentro de escavações somente se as seguintes hipóteses e limitações forem observadas: (1) a face da escavação é vertical; (2) a escavação é implantada instantaneamente; (3) as condições de contorno e condições iniciais no sistema hidrogeológico são como as mostradas na Figura 10.18 (a); (4) o estrato geológico é homogêneo e isotrópico; e (5) a escavação é longa e linear, ao invés de circular, de modo que a simetria cartesiana bidimensional é aplicável. Embora essas hipóteses possam parecer restritivas, os resultados podem ser úteis para estimar a provável resposta transitória de sistemas mais complexos.
A Figura 10.18 (b) mostra a resposta transitória do nível d’água, plotada como um rebaixamento adimensional, h/H, versus uma distância adimensional, x/L. O parâmetro é um tempo adimensional dado por:
(10.19)
onde H e L são definidos pela Figura 10.18 (a), K e Sy são a condutividade hidráulica e a vazão específica do aquífero, e t é o tempo. Na Figura 10.18 (c), a descarga adimensional γ, definida por:
(10.20)
É plotada contra τ. O fluxo de saída q = q(t) é a taxa de fluxo (com dimensões L3/T) para dentro da escavação vindo da face de percolação, por unidade de comprimento de face escavada perpendicular ao plano do diagrama na Figura 10.18 (a). Para aplicar o método para um caso específico, deve-se conhecer K, Sy, H e L. τ é calculado pela Eq. (10.19) e h(x, t) é determinado na Figura 10.18 (b). Os valores de γ(τ) determinados na Figura 10.18 (c), podem ser convertidos para valores de q(t) por meio da Eq. (10.20). As fórmulas e gráficos podem ser usados com qualquer conjunto de unidades consistente.
É possível realizar análise similares para cavas circulares, e para casos onde as condições de contorno são do tipo carga constante, com h(L, t) = H para todo t > 0, ao invés de contornos impermeáveis.
Leituras Sugeridas
CASAGRANDE, A. 1961. Control of seepage through foundations and abutments of dams. Géotechnique, 11, pp. 161-181.
GOODMAN, R. E., D. G. MOYE, A. VAN SCHALKWYK, & I. JAVANDEL. 1965. Ground water inflows during tunnel driving. Eng. Geol., pp. 39-56.
JAEGER, J. C. 1971. Friction of rocks and stability of rock slopes. Géotechnique, 21, pp. 97-134.
TERZAGHI, K. 1950. Mechanism of landslides. Berkey Volume: Application of Geology to Engineering Practice. Geological Society America, New York, pp. 83-123.