Capítulo 7: Evolução Química das Águas Subterrâneas

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Evolução Química das Águas Subterrâneas Naturais

Tradutores texto: Adriano Antunes Ferraro, Alessandro Cesarino, Carlos Diego de Souza Rodrigues, Estefânia Fernandes dos Santos, Fernando Lamego, Humberto Katsuyoshi Hagio, José Paulo G. M. Netto, Juliana Aparecida Galhardi, Leonardo Tozini Palagano, Mariana Muniz Blank, Maurício L. Viotti Cavalin, Paula Cristina Neuburger de Oliveira, Paula Rafahela Silva dos Santos, Pedro Augusto Ferreira Leite, Steven Deverel, Thomaz Zulpo, Daniel Cardoso, Gustavo Alves da Silva, Renato Macari; Cristina Deperon Maluf, Gabriel Ramiro Mesquita, Victor Soares Cardoso (edição de figuras); Diego Nogueira (diagramação); Claudia Varnier e Gerson Cardoso da Silva Jr. (líderes de capítulo); Juliana Gardenalli de Freitas (gerente); Everton de Oliveira (coordenador).

7.1 Sequências Hidroquímicas e Fácies

A água subterrânea origina-se, basicamente, a partir da infiltração da água meteórica ou de degelo no solo formando sistemas de fluxo, em subsuperfície. O solo possui excelente capacidade em alterar a composição química da água, durante seu percurso nesta zona delgada e biologicamente ativa. Em áreas de recarga, o solo sofre uma perda pronunciada de minerais para a água que o atravessa. À medida que a água subterrânea se move pelas linhas de fluxo das zonas de recarga em direção às de descarga, sua composição química é alterada pela ação de uma ampla variedade de processos geoquímicos. Nesta seção, serão descritas as principais mudanças que comumente ocorrem na química da água ao longo do fluxo de água subterrânea. Um pré-requisito para esta discussão corresponde à química das águas de chuva e de degelo, considerada como o ponto de partida para o sistema hidroquímico subterrâneo.

Química da Precipitação

A composição química da água que infiltra no solo pode ser determinada pela avaliação das análises químicas de chuva e da água de degelo. A Tabela 7.1 apresenta alguns resultados representativos das análises químicas de precipitação em várias regiões da América do Norte. Esta tabela mostra que as concentrações de sólidos dissolvidos em águas de chuva variam desde vários miligramas por litro em áreas continentais não industriais a várias dezenas de miligramas por litro nas áreas costeiras. A água de degelo que contribui para a recarga da água subterrânea pode conter maiores concentrações de sólidos dissolvidos que a água de chuva em função da dissolução do material particulado que se acumula na neve proveniente da precipitação atmosférica.

As águas de chuva e de degelo que ocorrem em áreas não urbanizadas e não industrializadas possuem normalmente valores de pH entre 5 e 6. O pH de equilíbrio para a água doce em contato com o CO2 da atmosfera é igual a 5,7, considerando o valor da pressão atmosférica igual a 10–3,5 bar. Isto pode ser demonstrado substituindo-se a variável PCO2 na Eq. (3.18) para o cálculo da atividade de H2CO3 e, por conseguinte, de H+, segundo a Eq. (3.31). Considerando-se que a água deve ser ácida, conforme observado na Figura 3.5 (a) que o \ce{HCO^-_3} é a única espécie de carbono inorgânico dissolvido presente em quantidade significativa; portanto, pode-se afirmar que (H+) = (\ce{HCO^-_3}).

Tabela 7.1 Composição química da água de chuva e da neve (mg/)*

Constituinte 1 2 3 4 5 6 7
SiO2 0,0 0,1 0,29 0,6 0,9
Ca 0,0 0,9 1,20 0,77 0,53 1,42 0,42
Mg 0,2 0,0 0,50 0,43 0,15 0,39 0,09
Na 0,6 0,4 2,46 2,24 0,35 2,05 0,26
K 0,6 0,2 0,37 0,35 0,14 0,35 0,13
NH4 0,0 0,6 0,41 0,48
HCO3 3 2,0 1,95
SO4 1,6 2,0 1,76 0,45 2,19 3,74
Cl 0,2 0,2 4,43 3,75 0,22 3,47 0,38
NO3 0,1 0,15 0,41 0,27 1,96
STD 4,8 5,1 12,4
pH 5,6 5,9 5,3 5,5 4,1
*(1) Neve, Pico Sponer, Estrada US Highway 50, Nevada (leste do Lago Tahoe), altitude de 7.100 pés, 20/11/1958; (2) chuva, em oito locais situados a oeste da Carolina do Norte, média de 33 eventos, 1962–1963; (3) chuva no sudeste da Austrália, 28 locais durante 36 meses, 1956–1957; (4) chuva em Menlo Park, Califórnia, invernos de 1957–1958; (5) chuva, próxima ao Lago Woods, noroeste de Ontário, média de 40 eventos de chuva, 1972; (6) chuva e neve, norte da Europa, 60 locais durante 30 meses, 1955–1956; (7) chuva e neve em local situado a 20 km ao norte de Baltimore, Maryland, média para o período de 1970–1971.

FONTE: Feth et al., 1964 (1); Laney, 1965 (2); Carroll, 1962 (3); Whitehead e Feth, 1964 (4); Bottomley, 1974 (5); Carroll, 1962 (6); e Cleaves et al., 1974 (7).

Em áreas industriais, o pH da água de chuva é inferior a 5,7, muitas vezes tão baixo quanto 3-4. De fato, as chuvas ácidas representam o maior problema ambiental em algumas regiões da Europa e da América do Norte. A principal causa do aumento da acidez está relacionada à emissão de enxofre para a atmosfera, proveniente das fábricas, plantas de processamento de minérios e estações geradoras de energia a partir da queima do carvão ou petróleo. Atualmente, a ocorrência de chuva ácida propagou-se das áreas industriais atingindo inclusive as áreas rurais. As emissões de enxofre na atmosfera ocorrem principalmente sob a forma de S particulado e SO2 gasoso. Na atmosfera, tais substâncias ocasionam um aumento nas concentrações de H+ e \ce{SO^2-_4} na água de chuva e neve,

\ce{S + O2 -> SO2(g)} (7.1)

\ce{SO2(g) + H2O + 1/2O2 -> SO4^2- + 2H+} (7.2)

Além de CO2 e SO2, a atmosfera é constituída por outros gases como O2, N2 e Ar. Por sua vez, o vapor d’água torna-se saturado nestes gases. No aquífero, o gás mais importante é o O2 uma vez que este confere à água uma considerável capacidade de oxidação.

Em suma, pode-se afirmar que a chuva e a água de degelo são soluções extremamente diluídas, leve a moderadamente ácidas, oxidantes e que podem rapidamente ocasionar alterações químicas nos solos ou materiais geológicos por onde infiltram.

Gás Carbônico no Solo

Praticamente toda a água que se infiltra nos sistemas de fluxo de água subterrânea atravessa o solo. Neste contexto, o termo solo é utilizado para designar a camada da superfície terrestre que foi suficientemente alterada por processos físicos, químicos e biológicos possibilitando, assim, o crescimento dos sistemas radiculares das plantas. Trata-se de uma definição pedológica em que o solo é considerado tanto um meio biológico como geológico. O solo exerce forte influência na composição química da água que o percola. Os efeitos mais importantes surgem em função dos processos apresentados na Figura 7.1. O solo possui a capacidade de gerar quantidades relativamente elevadas de ácidos, além de consumir todo ou grande parte do oxigênio dissolvido disponível na água infiltrada.

Figura 7.1 Representação esquemática dos maiores processos hidroquímicos que ocorrem nas áreas de recarga do aquífero.

Do ponto de vista geoquímico, o ácido mais importante produzido no solo é o H2CO3, gerado pela reação entre CO2 e H2O. O CO2 é produzido pela degradação da matéria orgânica e respiração das raízes das plantas. A degradação da matéria orgânica é a principal fonte de gás carbônico e pode ser representada pela reação:

O2 (g) + CH2O = CO2(g) + H2O (7.3)

onde CH2O corresponde à matéria orgânica. Outros compostos orgânicos também podem ser utilizados nas equações de oxidação para representar a produção de CO2. As reações anaeróbicas, como a redução do sulfato e a desnitrificação, também geram CO2 (Tabela 3.11). Tais processos, no entanto, são pouco relevantes para o balanço de CO2 no solo.

Análises da composição de gases do solo em amostras provenientes da América do Norte, Europa e outras localidades, comprovaram que a pressão parcial de CO2 na atmosfera do solo é muito maior do que a da atmosfera terrestre. Valores entre 10–3 e 10–1 bar são típicos. As pressões de CO2 são bastante variáveis no espaço e no tempo devido às variações de temperatura, condições de umidade, atividade microbiológica, disponibilidade de matéria orgânica e efeitos da estrutura do solo na difusão desse gás. Jakucs (1973) e Trainer & Heath (1976) abordam mais detalhadamente a ocorrência e o efeito da produção de gás carbônico no solo. Quando o CO2 reage com a água, mediante as condições de pressões parciais supracitadas, o pH diminui dramaticamente. Por exemplo, a partir do método acima indicado, é possível demonstrar que, sob pressão parcial de CO2 igual a 10–1 bar e com a temperatura da água entre 0 a 25 °C, o pH de equilíbrio oscilará entre 4,3 e 4,5. Isto é muito abaixo daquele pH reportado para água pluvial não contaminada.

Ao infiltrar-se no solo, a água rica em gás carbônico comumente encontra com minerais que são solúveis sob a influência do H2CO3, sendo este consumido pelas reações da água com esses minerais. Exemplos de algumas reações de lixiviação do H2CO3 são apresentados nas Eqs. (3.49) e (3.54), enquanto que outros serão descritos mais adiante neste capítulo. À medida que o H2CO3 é consumido, a oxidação da matéria orgânica e a respiração das plantas pelas raízes constituem-se em fontes de suprimento de CO2 para o gás do solo. O CO2, por sua vez, reage com a água para produzir mais H2CO3 [Eqs. (3.14) e (3.15)]. A partir da infiltração de mais água no solo, oriunda dos eventos de recarga, os processos bioquímicos e hidroquímicos são capazes, portanto, de fornecer fontes contínuas de acidez para promover as reações entre os minerais e a água. A reação entre o oxigênio livre e minerais como a pirita (FeS2) representa outra fonte de acidez. Em alguns locais a produção de H+ a partir desta reação de oxidação é de suma importância nos processos de intemperismo químico em subsuperfície. Assim, o solo pode ser considerado como uma “bomba ácida” agindo em uma fina e extensa camada de materiais ricos em matéria orgânica que recobre a maior parte da superfície terrestre.

Além do ácido carbônico, há muitos outros ácidos de origem orgânica produzidos no solo por processos bioquímicos. Tais substâncias, como os ácidos húmicos e fúlvicos, podem desempenhar papel importante no desenvolvimento de perfis pedológicos e no transporte de constituintes dissolvidos para o aquífero. Contudo, a maioria dos geoquímicos considera que a relevância desses ácidos como fonte de H+ é secundária quando comparada aos efeitos gerados pela dissolução do CO2.

Evolução dos Íons Maiores

Durante o percurso da água subterrânea na zona saturada, normalmente há um aumento nas concentrações de sólidos totais dissolvidos e em grande parte dos íons maiores. Como seria esperado dessa generalização, nos estudos hidrogeológicos realizados em várias partes do mundo, observou-se que nas áreas de recarga a água subterrânea mais rasa apresenta menores teores de sólidos dissolvidos quando comparada àquela situada a maiores profundidades, no mesmo aquífero, ou àquelas das áreas de descarga.

Em publicação clássica, conforme em mais de 10.000 análises químicas de amostras de água dos poços na Austrália, Chebotarev (1955) concluiu que a água subterrânea tende a evoluir, quimicamente, para a composição da água do mar. O autor observou que tal evolução é normalmente acompanhada pelas seguintes mudanças regionais dos ânions maiores:

Caminho ao longo do fluxo de água subterrânea \ce{->}

\ce{HCO^-_3 \rightarrow HCO^-_3 + SO4^{2-} + HCO^-_3 \rightarrow SO4^{2-} + Cl- \rightarrow Cl- + SO4^{2-} \rightarrow Cl- }

Aumento da idade da água \ce{->}

Essas mudanças surgem quando a água se move das zonas rasas de infiltração ativa, atravessando zonas intermediárias e ingressando em locais onde o fluxo é muito lento e a água, mais antiga. Esta sequência, como muitas outras nas ciências geológicas, deve ser avaliada em termos de escala e geologia locais, com possíveis interrupções ou incompletudes. Schoeller (1959) designou a sequência acima de Sequência de Ignatovich e Souline, em homenagem aos dois hidrogeólogos da extinta União Soviética que elaboraram hipóteses similares, independentes daquelas propostas por Chebotarev.

Nas grandes bacias sedimentares, a sequência de Chebotarev pode ser descrita em termos de três zonas principais, que correlacionam, de modo geral, com a profundidade (Domenico, 1972):

  1. Zona superior – caracterizada por águas de rápida circulação que fluem pelas rochas relativamente bem lixiviadas, com predomínio de \ce{HCO^-_3} e baixos teores de sólidos totais dissolvidos.
  2. Zona intermediária – águas de circulação mais lenta e maiores teores de sólidos totais dissolvidos. O sulfato é o ânion que normalmente predomina nesta zona.
  3. Zona inferior – o fluxo da água é muito lento. Minerais altamente solúveis são comuns nesta zona porque pouquíssimo fluxo de água ocorreu. Altas concentrações de Cl e de sólidos totais dissolvidos são características dessa zona.

As três zonas não podem ser correlacionadas especificamente com a distância percorrida ou com o tempo, exceto que a distância percorrida e o tempo tendem a aumentar da zona superior para a inferior. Em algumas bacias sedimentares, a idade da água subterrânea na zona superior pode variar de anos ou décadas enquanto em outras bacias, de centenas ou milhares de anos podem ser comuns. Águas salinas, ricas em cloreto presentes na zona inferior são geralmente muito antigas, mas as idades reais podem oscilar entre milhares a milhões de anos.

Do ponto de vista geoquímico, a sequência de evolução dos ânions descrita acima pode ser explicada em termos de duas variáveis principais: disponibilidade e solubilidade mineral. O conteúdo de \ce{HCO^-_3} na água subterrânea é normalmente controlado pelo gás carbônico presente no solo e pela dissolução da calcita e dolomita. As pressões parciais de CO2 geradas no solo e a solubilidade da calcita e dolomita são, em geral, os fatores que limitam as concentrações de sólidos totais dissolvidos. A Figura 3.7 ilustra que, sob pressões parciais de CO2 típicas no solo (10–3–10–1 bar), a calcita e a dolomita são ligeiramente solúveis, com concentrações de equilíbrio de \ce{HCO^-_3} na faixa de 100–600 mg/. Considerando que a calcita ou a dolomita ocorrem em quantidades significativas em quase todas as bacias sedimentares, e que estes minerais se dissolvem rapidamente quando em contato com a água subterrânea rica em CO2, o \ce{HCO^-_3} é quase invariavelmente o principal ânion nas áreas de recarga.

A Tabela 3.6 indica que há diversos minerais solúveis, de origem sedimentar, que liberam SO42– ou Cl durante as reações de dissolução. Os minerais mais comuns que contêm sulfato são a gipsita (CaSO4 · 2H2O) e anidrita (CaSO4). Ambos se dissolvem rapidamente em contato com a água. A reação de dissolução da gipsita é:

\ce{CaSO4} \cdot \ce{2H2O -> Ca2+ + SO4^{2-} + 2H2O} (7.4)

A gipsita e a anidrita são consideravelmente mais solúveis que a calcita e a dolomita, mas muito menos que os cloretos, como a halita (NaCl) e a silvita (KCl). Se a calcita (ou dolomita) e a gipsita se dissolverem em água doce, a 25 °C, a água se torna salobra, com teor de sólidos totais dissolvidos de aproximadamente 2.100 a 2.400 mg/, para PCO2 entre 10–3 e 10–1 bar. O principal ânion será o SO42– e, na prática, isso demonstra que a composição SO42–\ce{HCO^-_3}, na sequência de evolução de Chebotarev, foi alcançada. Se houver calcita e/ou dolomita, além da gipsita, em quantidades suficientes para que as reações de dissolução prossigam até o equilíbrio, a água evoluirá rápida e diretamente para esta fase, e não irá evoluir além dessa fase a menos que reaja com outros minerais solúveis ou evapore.

Na maioria dos terrenos sedimentares, a razão pela qual a água subterrânea percorre distâncias consideráveis até que o SO42– se torne um ânion predominante deve-se ao fato de que a gipsita ou anidrita raramente estão presentes em quantidades superiores a traços. Em diversas zonas rasas, esses minerais nunca estiveram presentes ou foram previamente removidos pelo fluxo de água subterrânea. Portanto, embora os estágios de \ce{HCO^-_3} e SO42– possam ser descritos em termos de simples limitações de solubilidade, exercidas por apenas dois ou três minerais, o processo de evolução entre os diferentes estágios é controlado pela disponibilidade desses minerais ao longo do caminho de fluxo. As reações de dissolução e a percolação da água subterrânea, em tempo hábil, eventualmente promoverão a completa remoção de minerais solúveis como a calcita, dolomita, gipsita e anidrita da zona de fluxo ativo de água subterrânea. Sistemas subsuperficiais raramente alcançam esse estágio em função dos processos geológicos, como o soerguimento continental, a sedimentação e a glaciação.

Nos sistemas de fluxos profundos nas bacias sedimentares e em alguns sistemas mais rasos, a água subterrânea evolui quimicamente ultrapassando o estágio onde o SO42– é o ânion principal, para uma salmoura rica em Cl. Isso ocorre caso a água subterrânea reaja com minerais altamente solúveis como halita ou silvita que, em bacias sedimentares profundas, podem surgir como uma camada de sal originalmente depositada durante a evaporação de bacias marinhas fechadas ou restritas, há muitos milhões de anos atrás. As solubilidades de outros minerais de cloreto de origem sedimentar são muito altas. De fato, como apresentado na Tabela 3.6, tais solubilidades são ordens de magnitude superiores que as solubilidades da calcita, dolomita, gipsita e anidrita. Os cloretos de origem sedimentar dissolvem-se rapidamente em água. A ocorrência de Cl como um ânion predominante somente a maiores profundidades ou próximo às áreas distais da bacia pode ser atribuída, de maneira geral, à escassez desses minerais ao longo do fluxo de água subterrânea. Por sua vez, nas áreas proximais da bacia, se a água subterrânea que não percorreu uma grande distância entrar em contato com quantidades abundantes de halita, ela evoluirá diretamente para a fase Cl, independentemente dos outros minerais presentes no sistema. Nas camadas de siltito, xisto, calcário ou dolomita, em que este íon está presente em minerais que ocorrem apenas em quantidades traço, a taxa de enriquecimento em Cl no aquífero é controlada, em grande parte, pelo processo de difusão. O cloreto move-se a partir dos pequenos espaços porosos, zonas mortas de fluxo e, no caso de camadas fraturadas, da matriz do meio poroso para os poros maiores ou conjunto de fraturas, onde a maior parte do fluxo de água subterrânea ocorre. Conforme indicado na Seção 3.4, a difusão é um processo extremamente lento. Este processo, aliado à ocorrência de minerais contendo sulfato ou cloreto em quantidades limitadas, pode explicar porque em muitos sistemas a evolução da química da água subterrânea de \ce{HCO^-_3} para SO42– e até Cl seja gradual ao invés de em diferentes estágios ao longo de pequenas distâncias, como seria de se esperar se fossem considerados apenas os efeitos da solubilidade.

A sequência de evolução dos ânions e a tendência de aumento dos valores de sólidos totais dissolvidos ao longo do fluxo de água subterrânea são generalizações que, quando utilizadas em um contexto de raciocínio geoquímico mais rigoroso, podem fornecer informações significativas sobre o histórico do fluxo de água. Contudo, gostaríamos de enfatizar que, em alguns sistemas de fluxo, a água subterrânea não ultrapassará o estágio do \ce{HCO^-_3} ou SO42–. Não é incomum que em algumas áreas sedimentares ocorram inversões na sequência dos ânions principais. Neste aspecto, ressalta-se o aumento de \ce{HCO^-_3} e o decréscimo de SO42– que podem ocorrer em virtude da redução bioquímica do sulfato. Estes processos são descritos na Seção 7.5.

Grandes variações nos conteúdos dos cátions maiores ocorrem comumente nos sistemas de fluxo de água subterrânea. Uma vez que as reações de troca catiônica normalmente causam alterações ou inversões nas sequências dos cátions, a generalização das sequências evolutivas, seguindo o mesmo raciocínio usado por Chebotarev, para os ânions, seria de pouca utilidade pois haveriam muitas exceções à regra. Para que os dados sobre cátions e ânions forneçam maiores informações acerca da natureza dos sistemas de fluxo de água subterrânea, as interpretações devem considerar os processos hidroquímicos específicos, uma vez que estes podem explicar as concentrações observadas. Exemplos dessa abordagem são apresentados nas Seções 7.3 a 7.5.

Sequência de Evolução Eletroquímica

O reconhecimento da sequência evolutiva dos ânions como uma feição característica resultou da compilação e interpretação de dados químicos dos sistemas regionais de fluxo. Trata-se de uma generalização inicialmente embasada na observação e, posteriormente, sustentada pela teoria geoquímica. Consideremos agora outra sequência de evolução, denominada sequência de evolução eletroquímica. Ela baseia-se na teoria geoquímica, mas até o momento não foi rigorosamente avaliada em campo.

A sequência de evolução eletroquímica, identificada inicialmente por Germanov et al. (1958), refere-se à tendência de diminuição dos valores de potencial redox da água ao longo do fluxo subterrâneo. As águas meteóricas e de degelo que infiltram no solo, por estarem em contato com oxigênio atmosférico, possuem inicialmente alto potencial redox, cujos valores de pE são próximos a 13, (ou 750 mV, expresso como Eh), para pH igual a 7. A oxidação da matéria orgânica, presente nas camadas do solo, é responsável pelo consumo de grande parte do oxigênio dissolvido. Este processo, representado pela Eq. (7.3), causa um decréscimo nos valores de potencial redox. A questão que se coloca é: até que ponto os valores deste parâmetro diminuem durante o percurso da água da zona não-saturada até o nível d’água? É razoável esperar que o consumo de oxigênio no solo dependa de vários fatores, como a estrutura do solo, porosidade e permeabilidade, natureza e distribuição da matéria orgânica em profundidade, frequência dos eventos de infiltração, profundidade do nível d´água e temperatura. Embora o oxigênio dissolvido seja um parâmetro muito importante na hidroquímica da água subterrânea, pouquíssimos estudos sobre a ocorrência deste parâmetro no aquífero foram relatados na literatura. A partir dos dados disponíveis, as seguintes premissas pode ser propostas:

  1. Em áreas de recarga, compostas por solos arenosos ou com cascalhos ou naquelas representadas por calcários cavernosos, a água subterrânea contém geralmente concentrações detectáveis de oxigênio dissolvido (i.e., > 0,1 mg/).
  2. Em áreas de recarga compostas por solos siltosos ou argilosos normalmente a água subterrânea não contém oxigênio dissolvido detectável.
  3. Em áreas com pouco ou nenhum manto de alteração recobrindo uma rocha fraturada permeável, concentrações detectáveis de oxigênio dissolvido comumente persistem por longas distâncias no sistema de fluxo. Em alguns casos, todo o sistema de fluxo de água subterrânea é oxigenado.

A presença de concentrações apreciáveis de oxigênio dissolvido em aquíferos rasos compostos por depósitos arenosos está provavelmente relacionada aos baixos conteúdos de matéria orgânica no solo e às rápidas taxas de infiltração de água meteórica.

Mesmo após o consumo de oxigênio dissolvido a níveis abaixo dos limites de detecção, o potencial redox pode ainda continuar muito alto, conforme descrito na  Seção 3.9. O consumo de oxigênio molecular por reações mediadas por bactérias que oxidam a matéria orgânica pode continuar até que as concentrações desse parâmetro estejam abaixo dos limites normais de detecção. Eventualmente é atingido um ponto onde as bactérias aeróbicas envolvidas nessas reações não podem mais se proliferar. Na zona aeróbia há outras reações que consomem oxigênio, como aquelas apresentadas na Tabela 3.10, referentes à oxidação do ferro ferroso, amônia, manganês e sulfeto. Apesar dos processos de oxidação consumirem apenas uma pequena porção do oxigênio total em relação à degradação da matéria orgânica, eles podem exercer um importante papel na evolução da química da água subterrânea.

Consideremos agora o que pode acontecer com a água à medida que esta alcança maiores profundidades no aquífero. De acordo com Stumm & Morgan (1970), em sistemas fechados que contêm material orgânico e outros nutrientes necessários ao crescimento das bactérias, a oxidação da matéria orgânica é acompanhada pelo consumo de O2 e em seguida, pela redução de \ce{NO^-3}. A redução de MnO2, se existente, deve ocorrer sob as mesmas condições de pE ou Eh da redução do \ce{NO^-3}, sucedida pela redução dos minerais de ferro, tais como os diversos compostos representados por Fe(OH)3. Quando valores suficientemente negativos de potencial redox são alcançados, as reduções de SO42– a H2S e HS, e da matéria orgânica para CO2 e CH4 dissolvidos podem ocorrer quase simultaneamente. Esta sequência eletroquímica das reações redox são apresentadas na Tabela 3.11, com os processos iniciais de consumo de oxigênio apresentado na Tabela 3.10. Stumm & Morgan (1970) apresentam a sequência de evolução eletroquímica como um fenômeno embasado na teoria da termodinâmica. Eles destacam que esta sequência é consistente com as observações a respeito da natureza química dos lagos ricos em nutrientes e dos biodigestores nas estações de tratamento de esgoto. Com a possível exceção da redução do MnO2 e do Fe(OH)3, as reações descritas na sequência de evolução eletroquímica são catalisadas biologicamente. Esta sucessão de reações redox é acompanhada por uma sucessão ecológica de micro-organismos, com várias espécies bacterianas adaptadas aos diferentes estágios da sequência redox.

Do ponto de vista hidrogeológico, a importante questão que se coloca é se a sequência de evolução eletroquímica existe ou não em aquíferos e, em caso afirmativo, onde e por quê? A sequência, ou pelo menos partes dela, ocorre na água subterrânea. Sabe-se, por exemplo, que em muitas áreas de recarga dos aquíferos o oxigênio dissolvido não está presente, o que é indicado pela ausência de concentrações detectáveis deste parâmetro em poços rasos. Possivelmente, houve um consumo de oxigênio mediante a existência dos processos acima descritos. Em alguns aquíferos, as maiores concentrações de \ce{NO^-3} surgem nas porções mais rasas, diminuindo nas águas mais profundas. Edmunds (1973) e Gillham & Cherry (1978) atribuíram este tipo de tendência do nitrato ao processo de desnitrificação, que requer a presença de bactérias desnitrificantes e um potencial redox moderado. Sabe-se que em algumas regiões a água subterrânea apresenta o potencial redox muito baixo, indicado pelas concentrações diminutas de SO4–2 e pelo odor de H2S. Tais características são atribuídas à redução de sulfato, mediada pela ação de bactérias. O metano (CH4) é um constituinte frequente em águas subterrâneas profundas de bacias sedimentares, sendo observado em várias localidades, mesmo nas porções mais rasas. Sua origem se deve à fermentação da matéria orgânica no sistema de água subterrânea. Sabe-se que em alguns sistemas de fluxo, as leituras de potencial redox pelo eletrodo de platina decrescem ao longo do fluxo regional de água subterrânea. Para ilustrar este tipo de tendência, os dados de potencial redox de dois sistemas de fluxo regionais de água subterrânea são apresentados na Figura 7.2.

Figura 7.2 Tendências dos valores de potencial redox medidos pelo eletrodo de platina–calomel ao longo dos fluxos regionais de água subterrânea de dois sistemas aquíferos. (a) Camada cretácica, Maryland; (b) Calcário Lincolnshire, Grã-Bretanha (adaptado de R.E. Jackson, comunicação escrita, 1977 baseado nos dados de Back & Barnes, 1969; Edmunds, 1973).

Na sequência evolutiva de Chebotarev, as mudanças graduais na composição dos ânions e sólidos totais dissolvidos foram atribuídas a dois fatores limitantes: disponibilidade dos minerais e taxa de difusão molecular. Na sequência de evolução eletroquímica, outras causas devem controlar a quantidade e a taxa de decréscimo nos valores de potencial redox ao longo do fluxo de água subterrânea. Considerando que em muitas porções do aquífero o SO42– está presente em concentrações significativas, ao contrário de H2S (ou HS) e CH4, parece sercomum que a água subterrânea não evolua para condições de baixo potencial redox, mesmo durante longos tempos residência. As reações capazes de promover uma diminuição progressiva nos valores de potencial redox talvez não prossigam em muitas áreas devido à inviabilidade das bactérias se desenvolverem nestes locais. A presença de ambientes no aquífero desfavoráveis à atividade bacteriana deve-se, provavelmente, à falta de alguns nutrientes essenciais para o seu crescimento. É possível que, mesmo em regimes hidrogeológicos com abundância de carbono orgânico, este parâmetro pode não estar disponível na forma que possa ser utilizado pelas bactérias. À medida que os estudos hidroquímicos se ampliem, incluindo temas como compostos orgânicos e bioquímica, um melhor entendimento a respeito do ambiente redox em subsuperfície será desenvolvido.

7.2 Métodos Gráficos e Fácies Hidroquímicas

Uma tarefa importante em estudos hidrogeológicos envolve a compilação e apresentação dos dados químicos de forma adequada para controle visual. Para tal finalidade são comumente utilizados vários métodos gráficos. O mais simples deles é o gráfico de barras. Dois exemplos são apresentados na Figura 7.3.

Figura 7.3 Representação das análises químicas de água subterrânea a partir dos gráficos de barras: (a) miliequivalentes por litro; (b) porcentagem de equivalentes totais por litro (modificado de Davis & De Wiest, 1966).

Para uma única amostra, os gráficos de barra indicam a composição dos íons maiores, expressa em equivalentes por metro cúbico (ou miliequivalentes por litro) e em percentagem de equivalentes totais. A mesma análise é ilustrada em um diagrama de pizza (Figura 7.4).

Figura 7.4 Representação da análise química de água subterrânea a partir do diagrama de pizza. O eixo radial é proporcional aos miliequivalentes totais. A mesma análise é representada na Figura 7.3 (modificado de Davis & De Wiest, 1966).

Na Figura 7.5 (a), a análise química é representada de forma que facilite uma rápida comparação em função das distintas formas do gráfico. Ele é conhecido como diagrama de Stiff, em homenagem ao hidrogeólogo que o utilizou pela primeira vez. A Figura 7.5 (b) mostra uma análise de água cuja composição química é muito distinta. Os diagramas de barras, de pizza, radiais e de Stiff são fáceis de construir e fornecem uma rápida comparação visual das análises químicas unitárias. No entanto, não são adequados para a representação gráfica de um grande número de análises.

Figura 7.5 Representação de duas análises químicas pelo diagrama de Stiff. (a) A mesma análise das três figuras anteriores; (b) segunda análise, ilustrando o contraste no formato do gráfico (Modificado de Davis & De Wiest, 1966).

Para este propósito, outros dois diagramas são utilizados. O primeiro deles, desenvolvido por Piper (1944) a partir de um diagrama similar proposto por Hill (1940), é representado na Figura 7.6. O segundo, introduzido na literatura por Schoeller (1955, 1962), é ilustrado na Figura 7.7. Ambos diagramas permitem representar as composições de cátions e ânions de várias amostras em um único gráfico, onde os principais grupos hidroquímicos ou tendências podem ser identificados visualmente. O diagrama semi-logarítmico de Schoeller mostra as concentrações totais de cátions e ânions. Por sua vez, o diagrama trilinear de Piper expressa as concentrações dos mesmos em porcentagens. Já que cada análise é representada por um único ponto, águas com concentrações totais muito diferentes podem ter representações idênticas neste diagrama. Ademais, o diagrama trilinear é capaz de apresentar um maior número de análises sem que se torne confuso, além de ser indicado para ilustrar os efeitos de mistura de duas águas de diferentes origens. A mistura de duas águas cujas composições são distintas é plotada a partir de uma linha reta que une os dois pontos. O diagrama semi-logarítmico tem sido usado para determinar os índices de saturação das amostras de água subterrânea em relação aos minerais como a calcita e a gipsita (Schoeller, 1962; Brown et al., 1972). Esta abordagem, no entanto, nem sempre é aconselhável, em função dos erros gerados por serem desconsiderados os efeitos dos complexos iônicos e dos coeficientes de atividade.

Algumas limitações dos gráficos trilineares, como aqueles criados por Hill e Piper, são sanadas a partir da utilização do diagrama apresentado na literatura soviética por S. A. Durov e descrito na literatura inglesa por Zaporozec (1972). Este diagrama, ilustrado na Figura 7.8, indica o percentual de cátions e ânions em triângulos separados, que neste contexto se assemelha ao diagrama de Piper.

Figura 7.6 Representação das análises químicas de água como porcentagens de equivalentes totais por litro no diagrama criado por Hill (1940) e Piper (1944).

A interseção do prolongamento das retas a partir de dois dos pontos da amostra, dos triângulos em direção ao retângulo central, fornece um ponto que representa a composição dos íons maiores, em porcentagem. A partir deste ponto, as linhas que se estendem para os dois retângulos adjacentes representam a análise em termos de dois parâmetros selecionados, tais como concentração total dos íons maiores, sólidos totais dissolvidos, força iônica, condutância específica, dureza, carbono inorgânico total dissolvido ou pH. Os sólidos totais dissolvidos e o pH são representados na Figura 7.8.

Os diagramas descritos anteriormente são úteis para visualizar as diferenças na composição química dos íons maiores nas águas subterrâneas. Além disso, há também uma necessidade de identificar, convenientemente, os grupos ou categorias a que as amostras de água se referem. Para este propósito, Back (1961, 1966), Morgan & Winner (1962) e Seaber (1962) criaram o conceito de fácies hidroquímicas. Este termo é uma paráfrase da definição usada pelos geólogos: fácies correspondem às porções identificáveis, de diferentes origens, que pertencem a qualquer corpo ou sistema geneticamente relacionado.

Figura 7.7 Representação das análises químicas de água no diagrama semi-logarítmico de Schoeller (mesmas análises da Figura 7.6).
Figura 7.8 Representação das análises químicas em miliequivalentes por litro no diagrama criado por Durov, conforme descrito por Zaporozec (1972).

Fácies hidroquímicas são zonas individualizáveis cujas concentrações de cátions e ânions podem ser adscritas a categorias de composição química definida. A definição de uma categoria normalmente se baseia em subdivisões do diagrama trilinear, conforme sugerido por Back (1961) e Back & Hanshaw (1965). As subdivisões estão representadas na Figura 7.9. Se o potássio estiver presente em porcentagens significativas, este elemento e o sódio são normalmente plotados como um único parâmetro. A definição de fácies, em separado, para os domínios de 0–10% e 90–100%, no gráfico cátion-ânion, em forma de diamante, é geralmente mais útil do que usar incrementos de 25%. A escolha dos intervalos de porcentagem deve ser feita de modo a otimizar a representação das características químicas da água. Em algumas situações, podem ser úteis mais subdivisões que as apresentadas na Figura 7.9.

Depois de se chegar a um esquema conveniente de classificação para a designação de fácies hidroquímicas, em geral é conveniente representar a sua distribuição regional a partir de mapas, seções ou diagramas de cerca.

Figura 7.9 Diagrama de classificação para as fácies catiônicas e aniônicas em termos de porcentagens de íons maiores. Os tipos hidroquímicos são designados de acordo com o domínio em que ocorrem nos setores do diagrama (Modificado de Morgan & Winner, 1962; e de Back, 1966).

A Figura 7.10 ilustra um exemplo de diagrama de cerca com a distribuição das fácies catiônicas na porção setentrional da Planície Costeira Atlântica, Estados Unidos. No mesmo diagrama é representada a direção geral de fluxo de água subterrânea.

Figura 7.10 Diagrama de cerca onde são representadas as fácies catiônicas e a direção geral de fluxo da água subterrânea em um segmento da porção norte da Planície Costeira Atlântica (Modificado de Back, 1961).

Em suma, pode-se afirmar que há muitas formas de representação gráfica das análises químicas, além de existirem muitos tipos de classificação, utilizadas para definir as fácies hidroquímicas. A escolha dos gráficos mais apropriados dependerá, em geral, da natureza específica do sistema investigado.

7.3 Água Subterrânea em Terrenos Carbonáticos

As considerações teóricas referentes às interações entre a água e os minerais carbonáticos são descritas no Capítulo 3. Garrels & Christ (1965) fornecem uma descrição detalhada do equilíbrio dos carbonatos. O objetivo aqui é descrever como a água subterrânea evolui quimicamente, em diversos cenários, conforme atravessa rochas ou depósitos inconsolidados constituídos por quantidades significativas de minerais carbonáticos.

Dissolução em Sistema Aberto

As águas de chuva e de degelo que infiltram em terrenos contendo calcita e dolomita normalmente dissolvem estes minerais até atingir seus níveis de saturação. A dissolução dos carbonatos ocorrem acima do nível d´água, com CO2 abundante, preenchendo os vazios parcialmente ocupados pela água, o processo de dissolução é referido como ocorrendo em sistemas abertos. Este tipo de sistema foi descrito previamente na Seção 3.5. Se a dissolução da calcita ou da dolomita prosseguir diretamente até o equilíbrio sob condições isotérmicas num sistema aberto, os caminhos da evolução química e a composição de equilíbrio da água podem ser estimados. Para fins de elaboração de um modelo de evolução química, assume-se que a água se movimenta no solo sob uma pressão parcial de CO2 que é mantida constante em função da oxidação bioquímica da matéria orgânica e da respiração das raízes das plantas. A água presente no solo equilibra-se rapidamente com o CO2, dissolvendo a calcita que está em contato com os poros. Para fins computacionais, admite-se que a pressão parcial de CO2(PCO2) é fixa, resultante do balanço entre a produção e a difusão deste gás no solo.

Os valores de equilíbrio de pH e \ce{HCO^-_3} mediante as diversas condições de PCO2, anteriores à dissolução mineral, podem ser calculados a partir das Eqs. (3.5), (3.18), (3.19), (3.31) e (3.32) e pelo método de aproximações sucessivas. Os resultados de PCO2, entre 10–4 e 10–1 bar, são representados pela linha (1) na Figura 7.11 (a), indicando as condições iniciais. À medida que acontece a dissolução da calcita ou dolomita, os valores de pH e as concentrações de \ce{HCO^-_3} na água aumentam ao longo dos caminhos de evolução geoquímica, segundo valores específicos de PCO2 que se estendem acima, na Figura 7.11 (a), a partir da linha (1). Os caminhos de evolução são calculados utilizando uma relação de balanço de massa para o carbono inorgânico total dissolvido, associada com as equações citadas acima. As etapas ao longo das rotas de evolução são traçadas hipoteticamente a partir da dissolução de pequenas quantidades arbitrárias de calcita ou dolomita na água.

Figure 7.11 Figura 7.11 Caminhos de evolução química para a dissolução da calcita em água a 15 °C. (a) Dissolução em sistema aberto; (b) dissolução em sistema fechado. A linha (1) representa a condição inicial para a água rica em CO2; a linha (2) indica a saturação da calcita; a linha (3) representa a saturação da dolomita, em condições semelhantes à saturação da calcita.

A composição da água evolui ao longo desses caminhos até a saturação. As condições de saturação para a calcita e dolomita, a 15 °C, são representadas pelas linhas (2) e (3), respectivamente. Se a temperatura for maior, as linhas de saturação serão mais baixas (menor saturação); por sua vez, o decréscimo da temperatura implica em linhas mais altas (maior saturação) devido ao aumento da solubilidade. As posições dos caminhos de evolução química e das linhas de saturação serão relativamente diferentes caso a dissolução exista em soluções de maior força iônica.

A infiltração de água no solo pode se estender até um ponto ao longo da linha de saturação e, depois, prosseguir para condições de não equilíbrio químico, fora da linha. Por exemplo, a água submetida a elevados valores de PCO2 pode atingir o equilíbrio em relação à calcita ou dolomita existentes nos horizontes superiores do solo e, então, alcançar maiores profundidades na zona não-saturada onde ocorrem diferentes pressões parciais de CO2 no gás do solo. Caso os valores de PCO2 sejam menores nas porções mais profundas da zona não-saturada, a água de infiltração perderá CO2 para o gás do solo, no processo denominado desgaseificação. Este processo é responsável pelo aumento no valor de pH da água do solo. Considerando que a desgaseificação é geralmente muito mais rápida do que a precipitação dos minerais carbonáticos, a água se tornaria supersaturada em relação à calcita ou dolomita, evoluindo acima das linhas de saturação ilustradas na Figura 7.11 (a).

A pressão parcial de CO2 na zona não-saturada, situada abaixo da zona de produção deste gás no solo, é controlada principalmente pelas taxas de difusão descendente a partir das camadas ricas em matéria orgânica no solo, e da emissão do CO2 para a atmosfera por meio de caminhos preferenciais como gretas de contração, fissuras por congelamento, buracos gerados pela ação das raízes das plantas e tocas de animais. Como resultado, baixos valores de PCO2 podem existir na zona não-saturada em algumas épocas do ano. Ainda nesses períodos, haverá supersaturação dos carbonatos caso a água infiltrada alcance maiores profundidades na zona não-saturada.

Foi citado anteriormente que, se existirem quantidades significativas de carbonatos na zona não-saturada, espera-se que estejam dissolvidos ou próximos à saturação. Considerando o princípio do balanço de massa, calcularemos a quantidade de carbonato necessária para que a saturação seja alcançada. A partir da Figura 3.7, constata-se que a uma pressão parcial relativamente alta de CO2, de 10–1 bar, 6,3 mmoles de Ca2+ estarão em solução após a dissolução da calcita em condições de equilíbrio em sistema aberto. Como cada mol de calcita dissolvido produz 1 mol de Ca2+ em solução, conclui-se que serão necessários 6,3 mmoles (0,63 g) de calcita dissolvida por litro de solução para que a condição de equilíbrio seja alcançada. Para expressar essa quantidade de calcita como uma porcentagem em peso de materiais geológicos, assume-se que os mesmos sejam granulares, com porosidade total igual a 33% e gravidade específica de 2,65. Portanto, a razão volumétrica entre vazios e sólidos será igual a 1:2 e a massa de sólidos por litro de vazios, 5.300 g. Se os vazios estiverem saturados em água e 0,63 g de calcita proveniente da massa de sólidos (0,01% em peso dos sólidos totais) se dissolver, a água estará saturada em relação a este mineral. Conteúdos de calcita desta magnitude estão bem abaixo dos limites de detecção dos métodos de análise mineralógica normalmente utilizados pelos geólogos. Este exemplo serve para ilustrar que os minerais, mesmo que presentes em quantidades pequenas ou mesmo insignificantes, podem exercer forte influência na composição química da água subterrânea que percola o meio poroso. Tal generalização também se aplica a outros minerais no aquífero.

Sistema Fechado

Em situações onde essencialmente não existem carbonatos no solo ou na zona não-saturada, a água infiltrada, rica em CO2, pode migrar para a zona saturada sem que haja muito consumo de CO2. Durante a infiltração de CO2, as espécies de carbono inorgânico dissolvido em solução são H2CO3 e CO2(aq) que, por sua vez, não serão convertidas em \ce{HCO^-_3}. Nesta discussão, a pequena quantidade de \ce{HCO^-_3} gerada pela conversão de CO2 durante a lixiviação dos aluminossilicatos é desconsiderada. O efeito destes minerais nas concentrações de carbono inorgânico dissolvido na água subterrânea é abordado na Seção 7.4.

Caso a água de recarga atinja o nível d´água sem que decorra um consumo significativo de CO2 e esta entre em contato com os carbonatos durante o trajeto na zona saturada, a dissolução destes minerais ocorrerá neste trecho sob condições de sistema fechado. À medida que H2CO3 é transformado em \ce{HCO^-_3} (Eq. 3.54), a concentração deste ânion e a pressão parcial de CO2 diminuem. Nas rochas carbonáticas e na maioria de outras camadas calcárias não há reposição do suprimento de CO2 abaixo do nível d´água. Exceções a esta generalização são discutidas na Seção 7.5. Tal como no sistema aberto, a água prosseguirá a partir de uma condição inicial, controlada pela pressão parcial de CO2 e pelo pH até a saturação em relação aos minerais carbonáticos existentes no sistema. A Figura 7.11 (b) mostra as condições iniciais e de saturação, além de alguns caminhos de evolução representativos para a dissolução em sistema fechado. Os caminhos de evolução química e as linhas de saturação foram calculados utilizando procedimentos semelhantes aos adotados para o sistema aberto, exceto a PCO2, que é variável, e o carbono inorgânico dissolvido total, determinado a partir da soma do CO2 inicial e do carbono oriundo da dissolução dos carbonatos.

A comparação entre as Figuras 7.11 (a) e (b) indica que os valores de pH e das concentrações de \ce{HCO^-_3} de equilíbrio resultantes da dissolução da calcita ou dolomita são diferentes nos sistemas aberto e fechado. Considerando que a solubilidade dos carbonatos é maior para uma determinada PCO2 inicial, no sistema aberto haverá um decréscimo nos valores de pH de saturação e um aumento das concentrações de \ce{HCO^-_3} e Ca2+ em água. Em condições iniciais de PCO2 elevada, a diferença na composição química da água entre os dois sistemas é a mínima possível. A Figura 7.11 (b) mostra que, para um intervalo específico de PCO2 no solo, o pH de equilíbrio é superior a 8, no caso de sistemas fechados, e inferior a este valor para os sistemas abertos. Em terrenos carbonáticos, o pH natural da água subterrânea é quase invariável entre 7,0 e 8,0, sugerindo que os sistemas abertos são comuns nestas áreas.

Diante do exposto acima, a evolução química das águas subterrâneas foi considerada mediante as condicionantes apropriadas que controlam o conteúdo de CO2 nos sistemas abertos e fechados, sob condições de contorno independentes do tempo. Na natureza, as mudanças nas pressões parciais de CO2, temperaturas do solo e nos processos que controlam a difusão podem causar desvios significativos nas condições estabelecidas em nossos modelos hidroquímicos. Em alguns casos, a água que ingressa no aquífero, em sistemas abertos, pode seguir ao longo de sua trajetória na zona não-saturada e, em seguida, a partir de quando esta atinge o nível d´água evolui até a saturação, sob condições de sistema fechado. Outros processos que podem afetar a evolução química da água subterrânea são adsorção, troca catiônica, difusão gasosa e dispersão mecânica. Dissoluções em sistema fechado ou parcialmente fechado, acima do nível d´água, podem ocorrer em algumas circunstâncias. Apesar disso, os modelos de sistemas aberto e fechado representam uma ferramenta útil para a interpretação dos dados químicos de muitos contextos hidrogeológicos. No entanto, são necessários mais estudos a respeito da distribuição das pressões parciais de CO2 na zona não-saturada de modo a fornecer uma base mais sólida para a utilização desses modelos na interpretação dos dados de campo.

Dissolução Incongruente

O conceito de dissolução incongruente é apresentado na Seção 3.5. A aplicação específica deste conceito no sistema água-calcita-dolomita é descrita a seguir. A discussão anterior baseou-se na premissa de que a calcita e a dolomita, quando presentes no sistema hidrogeológico, dissolvem-se de forma independente. Embora as linhas de saturação dos dois minerais sejam representadas na Figura 7.11, é importante ressaltar que estas linhas foram determinadas, considerando a dissolução destes minerais em sistemas separados. Se a calcita e a dolomita coexistem no mesmo sistema hidrogeológico, o que normalmente acontece, ambos podem se dissolver de forma simultânea ou em sequência, conduzindo a diversas relações de equilíbrio, além daquelas apresentadas nesses diagramas.

Em termos de constante de equilíbrio e atividade, as condições de saturação para calcita e dolomita podem ser expressas como:

K_c = \ce{[Ca^{2+}][CO3^{2-}]} (7.5)

K_d = \ce{[Ca^{2+}][Mg^{2+}][CO3^{2-}]^2} (7.6)

onde os índices c e d designam calcita e dolomita, respectivamente. Consideremos o cenário em que a dolomita se dissolve na água subterrânea a 10 °C até a saturação. Por sua vez, se a água percolar por uma zona que contém calcita, não haverá dissolução deste mineral pois a solução estará saturada em relação à calcita. Esta conclusão baseia-se nos valores de Kc e Kd listados na Tabela 3.7. Em condição de equilíbrio com a dolomita, o produto da atividade iônica [Ca2+][CO32–] é igual a K_d^{1/2}, que a 10 °C equivale a Kc (Tabela 3.7). Utilizando-se os dados da Tabela 3.7, a comparação entre os valores de K_d^{1/2} e Kc indica que K_d^{1/2} > Kc para temperaturas menores que 10 °C, e K_d^{1/2} < Kc quando as temperaturas excedem este valor. Portanto, se a dissolução da dolomita até o equilíbrio existir sob baixas temperaturas, a água se tornará supersaturada em relação à calcita, causando a precipitação deste mineral. Assim, o sistema evolui para uma condição em que a taxa de dissolução da dolomita se iguala à taxa de precipitação da calcita. A coexistência dos dois processos (dissolução da dolomita e precipitação da calcita) está implícita na expressão dissolução incongruente da dolomita.

Quando a dissolução da dolomita até a condição de equilíbrio ocorra mediante temperaturas superiores a 10 °C, a água poderá dissolver a calcita ao atravessar uma camada que contém este mineral, pois K_d^{1/2} < Kc. A dissolução da calcita é responsável pelo aumento das concentrações de [Ca2+] e [CO32-] na água, tornando-a supersaturada em relação à dolomita. Como a precipitação deste mineral é muito lenta, a supersaturação pode persistir por longos períodos, com pouca ou nenhuma precipitação de dolomita. No entanto, se quantidades significativas de dolomita se formarem, a dissolução de calcita será incongruente. Durante longos intervalos de tempo a incongruência das reações destes dois minerais pode exercer uma influência significativa nas evoluções química da água e mineralógica da rocha matriz.

Contudo, se a água subterrânea solubiliza primeiro a calcita até o equilíbrio, e depois entra em contato com a dolomita, esta última se dissolverá independentemente da temperatura, pois a água deve adquirir uma atividade significativa de Mg2+ antes de alcançar o equilíbrio [Eq. (7.6)]. Entretanto, mesmo nos estágios iniciais da dissolução da dolomita a água torna-se supersaturada em relação à calcita devido ao aporte de [Ca2+] e [CO32-] provenientes das precipitações destes dois carbonatos. Nestas circunstâncias, a dissolução de dolomita seria incongruente. Enquanto houver precipitação de calcita, a água tende a se tornar insaturada em relação à dolomita. Se isto acontece em uma zona onde há dolomita, este mineral continuará se dissociando à medida que a calcita precipita. O resultado disso é o decréscimo na razão molal Ca2+/Mg2+.

Na discussão acima, apresentou-se o conceito de dissolução incongruente da calcita e da dolomita, assumindo que a água subterrânea interage sequencialmente com estes minerais, ou seja, primeiro a água reagirá com um mineral, e depois com o outro. Em vários sistemas hidrogeológicos, como aqueles compostos por tilito ou calcário parcialmente dolomítico, calcita e dolomita coexistem na mesma camada, sendo esperada a dissolução simultânea dos dois minerais em presença de água insaturada nesses carbonatos. Desta forma, as relações de incongruência seriam controladas pelas diferenças nas taxas de dissolução efetivas, assim como pela temperatura e pressão parcial de PCO2. Diferenças nas taxas de dissolução determinam a razão molal Ca2+/Mg2+. Por exemplo, se a água que infiltra no solo torna-se rica em CO2 e a seguir, atravessa um horizonte do solo que contém calcita e dolomita, os dois minerais se dissolverão. Caso a calcita dissolva mais rapidamente que a dolomita, a saturação do primeiro mineral será alcançada muito antes que a do segundo. Uma vez que a saturação da calcita é atingida, a dissolução da dolomita prosseguirá, embora de forma incongruente, até atingir a saturação. A razão molar Ca2+/Mg2+ evoluirá de um valor inicial elevado para outro, muito menor, conforme a disponibilidade de Mg2+ associada à dissolução de dolomita, e ao consumo de Ca2+, a partir da precipitação de calcita. Sob estas circunstâncias, a supersaturação de calcita poderá perdurar por distâncias consideráveis ao longo do fluxo de água subterrânea.

Por outro lado, se a dissolução de dolomita for muito mais rápida que a de calcita, a razão molar Ca2+/Mg2+ será muito menor do que a descrita anteriormente. Isso pode surgir se a dolomita for muito mais abundante nos materiais geológicos, assim a superfície de contato será muito maior do que a da calcita. Caso a saturação da dolomita seja alcançada rapidamente, haverá pouca dissolução de calcita. Nestas condições, o raciocínio que se aplica é similar ao da dissolução sequencial de dolomita-calcita, descrita anteriormente. A temperatura da água também pode afetar a tendência de progressão das reações incongruentes dos minerais carbonáticos em solução.

Por fim, ressalta-se que em sistemas aquíferos que contêm calcita e dolomita, as razões molares Ca2+/Mg2+ podem variar amplamente, tanto abaixo quanto acima do valor unitário, dependendo de fatores como a influência da distribuição sequencial, dissolução simultânea, dissolução incongruente, pressões parciais de CO2, temperatura, entre outros. A interpretação da composição química da água em sistemas carbonáticos mediante o uso de modelos de dissolução em sistemas simples, abertos ou fechados, pode, por vezes, ser enganosa. As reações de troca catiônica também podem alterar a razão Ca2+/Mg2+ na água subterrânea, mas como apresentado nas discussões anteriores, não necessariamente precisam ser consideradas para explicar tais variações.

Outros Fatores

Conforme indicado na Tabela 3.7, as solubilidades da calcita e da dolomita são altamente dependentes da temperatura. As relações entre solubilidade e temperatura para estes minerais são incomuns, pois as maiores solubilidades acontecem sob baixas temperaturas, onde o CO2 é mais solúvel e os valores de Kc e Kd, maiores. Quase todos os demais minerais apresentam relação inversa, sendo mais solúveis sob altas temperaturas. Na Seção anterior observou-se o efeito da temperatura nas relações de incongruência. Agora, nosso objetivo é apresentar uma visão mais abrangente dos efeitos da temperatura na evolução química da água subterrânea em terrenos carbonáticos.

Em regiões climáticas onde há o acúmulo de neve durante o inverno, a maior recarga do aquífero ocorre geralmente durante a primavera, com a infiltração da água de degelo pelo solo frio ou mesmo parcialmente congelado, movendo-se para baixo até o nível d’água. Em extensas áreas do Canadá e Norte dos Estados Unidos, os minerais carbonáticos aparecem em abundância em superfície ou subsuperfície. Durante os eventos de recarga, na primavera, a dissolução pode existir sob temperaturas muito baixas, em sistemas abertos ou semiabertos. Em profundidades logo abaixo da superfície, frequentemente as temperaturas são alguns graus mais elevadas. A água saturada em calcita e dolomita que infiltra das camadas superiores do solo, mais frias, em direção às mais profundas, mais quentes, torna-se supersaturada em relação aos dois minerais devido ao aumento da temperatura.

Por exemplo, consideremos uma situação em que a água está inicialmente saturada em relação à calcita, a 0 °C. Este cenário pode representar a água que infiltra no solo durante o derretimento de neve, na primavera. Se a água move-se abaixo da zona de congelamento até profundidades onde o material geológico possui temperatura similar à média anual da temperatura do ar, esta se tornará supersaturada em relação à calcita. À proporção que a água alcança porções mais profundas do aquífero, a temperatura continuará aumentando como resultado do gradiente geotérmico regional. Progressivamente, a supersaturação em relação à calcita será ainda maior, a não ser que os efeitos da temperatura sejam balanceados pelas perdas de Ca2+ e CO32-, decorrentes da precipitação da calcita. Considerando a temperatura de 25 °C e pressão parcial de CO2 de 10–2 bar, a solubilidade desse mineral será metade daquela a 0 °C. Este exemplo ilustra que as concentrações de sólidos totais dissolvidos no aquífero não necessariamente aumentam ao longo do fluxo. Se a química da água subterrânea é controlada quase que totalmente pelas interações com os minerais carbonáticos, é possível que as diferenças de temperatura provoquem uma diminuição nos valores de sólidos totais dissolvidos. Contudo, na natureza tais decréscimos causados pela precipitação de materiais carbonáticos podem ser mascarados pelo aumento nas concentrações de sólidos totais dissolvidos que aparece em função da dissolução de outros minerais.

Supondo a existência de dissolução e precipitação de carbonato no modelo regional de fluxo, a água mover-se-á das áreas de recarga, onde as temperaturas são baixas, para as zonas mais profundas cujas temperaturas são mais elevadas e, então, retornando às camadas mais rasas e frias, nas áreas de descarga. Nestas circunstâncias, a água torna-se saturada em relação à calcita e dolomita na área de recarga e conforme esta alcança maiores profundidades no aquífero, haverá precipitação desses carbonatos. Nas áreas de descarga, onde a temperatura é mais baixa, a dissolução ocorre novamente na presença de minerais carbonáticos desde que outras interações mineral-água não alterem consideravelmente os níveis de saturação.

Nos processos de evolução hidroquímica citados, os efeitos de outros sais na água foram desprezados. Se a água contém concentrações significativas de Na+, K+, Cl e SO42–, o equilíbrio mineral-carbonato será influenciado pelos efeitos da força iônica e formação de complexos. Isto pode ser inferido a partir das discussões apontadas nas Seções 3.3 e 3.5. A maior salinidade se reflete em altos valores de força iônica que, por sua vez, causa a diminuição dos coeficientes de atividade de todos os íons maiores em solução (Figura 3.3). Neste caso, as solubilidades da calcita e da dolomita aumentam. Na elaboração de modelos hidroquímicos, os efeitos da força iônica em águas doces a salobras podem ser considerados quantitativamente. A modelagem de soluções salinas ou salmouras, no entanto, envolve grandes incertezas associadas às relações dos coeficientes de atividade.

A água subterrânea que é influenciada quimicamente pela dissolução da calcita ou dolomita, sofre comumente também a influência de outros minerais que exercem algum controle nas concentrações de Ca2+ e Mg2. Por exemplo, a dissolução de gipsita (CaSO4 · 2H2O) pode ocasionar grandes aumentos nas concentrações de Ca2+. A partir do efeito do íon comum, abordado na Seção 3.5, este processo pode levar à supersaturação da água em relação à calcita ou dolomita, ou limitar significativamente a quantidade destes minerais em solução ao longo do fluxo de água subterrânea. No caso da presença de argilominerais, processos de troca catiônica podem causar grandes mudanças nas proporções de cátions e, desta forma, alterar os níveis de saturação da água em relação aos minerais carbonáticos. As influências do efeito do íon comum e da troca de catiônica na evolução química da água subterrânea são descritas com maior detalhe na Seção 7.5.

O uso de dados termodinâmicos, obtidos segundo experimentos realizados em formas relativamente puras dos minerais carbonáticos, é uma prática comum na elaboração de modelos geoquímicos que visam descrever o equilíbrio entre a água subterrânea e os carbonatos. Em sistemas naturais, no entanto, a calcita e a dolomita podem diferir significativamente da composição ideal. Por exemplo, a calcita pode conter vários pontos percentuais de Mg em solução sólida com Ca. Impurezas como Sr e Fe normalmente ocorrem em minerais carbonáticos. Embora tais impurezas possam constituir uma fonte importante desses elementos na água subterrânea, seus efeitos nas constantes de equilíbrio da calcita e da dolomita são, em geral, pequenos. Em algumas situações, no entanto, as reações de oxidação e hidrólise, com tais impurezas, podem promover uma produção significativa de H+, diminuindo o pH. É importante salientar que em nossa análise sobre o sistema carbonato, os processos de dissolução e precipitação de minerais carbonáticos foram isolados de muitos outros processos que comumente ocorrem na natureza de forma concorrente dentro do sistema hidroquímico. Na interpretação dos dados químicos de sistemas hidrogeológicos reais, normalmente é necessário considerar um sistema mais complexo de interação de processos hidroquímicos.

Interpretação de Análises Químicas

A calcita e a dolomita existem praticamente em todas as regiões do mundo onde as rochas sedimentares são abundantes. Descrever a evolução química da água subterrânea em todas essas localidades ou em um número representativo de regiões seria uma tarefa intransponível, mesmo se muitos capítulos pudessem ser dedicados ao assunto. Ao invés disso, nosso enfoque será sintetizar as características hidroquímicas da água subterrânea em um pequeno número de sistemas de rochas carbonáticas e a seguir, detalhar algumas interpretações geoquímicas propostas para estes sistemas. Para tanto, foram selecionados os aquíferos cársticos do centro da Pensilvânia, centro da Flórida e centro-sul de Manitoba. Os três aquíferos situam-se em regiões cujas condições climáticas e hidrológicas são muito distintas. A localização, geologia e as condições hidrogeológicas dos três aquíferos estão resumidas na Tabela 7.2. As informações sobre o aquífero na Pensilvânia foram obtidas a partir dos dados de Jacobson & Langmuir (1970) e Langmuir (1971). O sistema aquífero na Flórida foi descrito por Back & Hanshaw (1970) e Hanshaw et al. (1971). A hidrogeologia de uma parte do aquífero em Manitoba, usada neste estudo comparativo, foi descrita por Goff (1971). Adicionalmente, Render (1970) apresentou um estudo regional a respeito deste sistema aquífero.

Nos estudos hidroquímicos, o pH foi medido cuidadosamente em campo. Os balanços iônicos das análises químicas são inferiores a 5% (limite de erro aceitável para o balanço de cargas, apresentado na Seção 3.3).

No estudo realizado na Pensilvânia, efetuaram-se análises químicas em 29 nascentes e 29 poços. Dos 29 poços amostrados, 20 atravessam o dolomito e 9, o calcário. Em relação às nascentes, 22 afloram em calcários e 7, em dolomitos. Por sua vez, no estudo conduzido no aquífero na Flórida foram analisadas amostras de 53 poços. Nesta discussão, utilizaram-se dados de apenas 39 poços enquanto os demais foram desconsiderados com o intuito de evitar efeitos de mistura com áreas de água salgada, próximas ao oceano. Por fim, no estudo conduzido no aquífero em Manitoba, analisaram-se amostras de 74 poços.

As médias e os desvios padrão da temperatura, concentrações dos íons maiores, pH, PCO2 e dos índices de saturação para calcita, dolomita e gipsita nas amostras de água subterrânea coletadas nas três áreas de estudo são apresentados na Tabela 7.3, que indica as semelhanças e diferenças importantes entre as três localidades. Em cada área, \ce{HCO^-_3} e SO42– são, na ordem, os ânions mais abundantes. As concentrações de Cl são, em geral, muito baixas. A concentração média de \ce{HCO^-_3} no aquífero em Manitoba é mais do que o dobro das médias registradas nas amostras de água do aquífero na Flórida e das nascentes que surgem no aquífero na Pensilvânia. A média dos valores de \ce{HCO^-_3} para as amostras de água dos poços no aquífero na Pensilvânia está entre estes dois extremos. As médias dos valores de pH medidos nas amostras de água dos aquíferos na Flórida e em Manitoba são semelhantes, sendo ligeiramente menor no aquífero na Pensilvânia. Praticamente todas as amostras possuem pH entre 7 e 8. No aquífero Manitoba, a razão molal média Ca2+/Mg2+ é inferior a uma unidade, enquanto nas outras áreas este valor excede a unidade.

Tabela 7.2 Características hidrogeológicas dos sistemas aquíferos cársticos. As composições químicas da água subterrânea de cada sistema são apresentadas na Tabela 7.3

  Áreas de estudo
Pensilvânia* Flórida Manitoba
Geografia Seção do Vale dos Apalaches e da Província de Ridge, Província Central Calcário, região central da Flórida Planície glacial na região dos lagos, centro-sul de Manitoba
Clima e precipitação anual Úmido continental, 990 mm Tropical e subtropical, 1.400 mm Semi-úmido, continental, 500 mm
Tipo de aquífero e idade Camadas de dolomito e calcário intercaladas às de folhelho e arenito Calcário terciário, coberto por 0–50 m de argila, areia e cascalho Dolomito siluriano coberto por 0–30 m de tilito
Profundidade do nível da água 10–100 m 0–30 m 0–10 m
Espessura do aquífero Muito variável 100–700 m 5-50 m
Áreas de recarga Dolinas, leitos de rios, solos pouco espessos, afloramentos, infiltração da água em depósitos glaciais Áreas de afloramento e áreas de areia e cascalho Áreas de tilitos pouco espessos e afloramentos locais
Profundidade dos poços 30–150 m 50–400 m 10–50 m
Idade da água subterrânea Nascentes locais: dias Áreas de recarga: meses a anos
Outros locais: muitos milhares de anos
Meses a muitos anos
Nascentes regionais: meses
Poços: semanas a meses
*As amostras desta área de estudo foram coletadas em nascentes locais, regionais e poços. As nascentes locais se originam em rochas carbonáticas, na base das encostas das montanhas; as nascentes regionais afloram no fundo dos vales.

Fontes: Back & Hanshaw (1970); Goff (1971) e Langmuir (1971).

Tabela 7.3 Resumo das análises químicas das amostras de água dos aquíferos cársticos situados no centro da Flórida, centro da Pensilvânia e centro-sul de Manitoba

  Aquífero na Pensilvânia (calcário e dolomita) Aquífero na Flórida (calcário) Aquífero em Manitoba (dolomito)
Nascentes Poços
Parameter \bar{X}^* σ \bar{X} σ \bar{X} σ \bar{X} σ
T ( °C) 10,9 1,3 18,0 1,2 24,4 1,2 5,1 0,9
pH 7,37 1,5 7,47 0,3 7,69 0,25 7,61 0,25
K+ 1,6 0,6 1,5 1,4 1,0 0,8 9 7
Na+ 3,8 1,8 3,1 3 7,9 5,3 37 36
Ca2+ 48 11 55 22 56 25 60 15
Mg2+ 14 11 28 14 12 13 60 21
\ce{HCO^-_3} 183 43 265 83 160 40 417 101
Cl 8,2 3,5 10 9 12 9 27 26
SO42– 22 5 20 15 53 94 96 127
PCO2 (atm) 10–2,2±0,15 10–2,15±0,43 10–2,51±0,35 10–2,11±0,33
IScal*** –0,39 0,25 –0,16 0,12 +0,12 0,18 +0,04 0,17
ISdol*** –1,2 0,74 –0,36 0,23 –0,23 0,49 +0,27 0,35
ISgip*** –2,0 0,14 –2,2 0,46 –2,3 0,8 –1,8 0,53
*\bar{X}, média
(**)σ, desvio padrão
(***), Índice de saturação expresso na forma logarítmica:
IScal = log ([Ca2+][CO32-]/Kcal)
ISdol = log ([Ca2+][Mg2+][CO32-]²/Kdol)
ISgip = log ([Ca2+][SO42–]/Kgip)

Fonte: Back, comunicação escrita; Goff (1971) e Langmuir (1971).

Para interpretar esses dados hidroquímicos, começaremos pelos valores de PCO2 calculados para as três áreas, consideravelmente superiores à PCO2 da atmosfera terrestre (10–3,5 bar). Isso indica que as águas dos aquíferos supracitados enriqueceram-se em CO2 ao infiltrarem no solo. O segundo ponto a ser destacado são as grandes diferenças de temperatura das águas subterrâneas nas três localidades. A água do aquífero na Flórida é a mais quente, com temperaturas próximas a 25 °C. No aquífero na Pensilvânia, a temperatura média da água é de aproximadamente 11 °C e no aquífero em Manitoba, as temperaturas são próximas a 5 °C.

O pH da água desses aquíferos é maior que 7 e inferior a 8. A Figura 3.5 (a) indica, portanto, que o carbono inorgânico dissolvido ocorre praticamente como \ce{HCO^-_3}. As concentrações de bicarbonato são maiores no aquífero em Manitoba, indicando que houve maior dissolução de calcita ou dolomita na água subterrânea deste local do que nos outros dois aquíferos. A quantidade de minerais carbonáticos dissolvidos no aquífero na Pensilvânia é intermediária àquela registrada nos aquíferos em Manitoba e na Flórida. Tais diferenças podem ser atribuídas a três fatores principais, sendo a temperatura o primeiro deles. Como era de se esperar pelas considerações de solubilidade, a água mais fria possui as maiores concentrações dos produtos da dissolução dos minerais carbonáticos. No entanto, isto não pode ser responsável por todas as diferenças. O segundo fator é a pressão parcial de CO2. A água do aquífero em Manitoba possui o maior valor de PCO2 e a do aquífero na Flórida, o menor. As diferenças são grandes o suficiente para explicar as maiores variações nas concentrações de \ce{HCO^-_3}. Trainer & Heath (1976) atribuíram os valores relativamente baixos de PCO2 no aquífero na Flórida à ocorrência de areias permeáveis em suas principais áreas de recarga. A área de maior recarga é apresentada na Figura 7.12 (a). Esses autores sugerem que nessas áreas pouco conteúdo de CO2 é produzido no solo devido aos baixos teores de matéria orgânica. Eles também propõem que a alta permeabilidade da areia contribui para a perda de CO2 do solo para a atmosfera.

O terceiro fator é o grau de saturação em relação à calcita e dolomita. Neste sentido, adota-se o método de Langmuir (1971); uma amostra é considerada saturada se o índice de saturação, expresso em escala logarítmica, estiver na faixa de –0,1 a +0,1. Um total de 62% das amostras de água em Manitoba estavam saturadas em relação à calcita e dolomita, 12% supersaturadas e 8% significativamente insaturadas. Na Flórida, os dados indicaram que 66% das amostras de água estavam supersaturadas em relação à calcita, 24% saturadas e 10%, insaturadas. Em relação à dolomita, 59% das amostras estavam supersaturadas, 21% saturadas e 20%, insaturadas. Os resultados das amostras de água das nascentes e dos poços no aquífero na Pensilvânia são muito diferentes: 20% eram saturadas e 80% insaturadas em relação à calcita. Quanto à dolomita, 4% das amostras estavam saturadas e o restante, insaturadas. Se todas as amostras insaturadas do aquífero na Pensilvânia alcançassem a saturação pela dissolução da calcita ou dolomita, os valores médios de \ce{HCO^-_3} e pH deste aquífero se aproximariam muito mais das médias destes dois parâmetros, obtidas nas amostras de águas do aquífero em Manitoba.

Figura 7.12 Aquífero cárstico no centro-sul da Flórida. (a) Superfície potenciométrica e área de maior recarga; (b) Áreas insaturadas em relação à calcita e dolomita (Modificado de Hanshaw et al., 1971).

Como apenas 10% das amostras de água do aquífero na Flórida são insaturadas em relação à calcita, a saturação destas águas não aumentaria consideravelmente os valores de \ce{HCO^-_3} e pH.

Nestas condições, é razoável concluir que as condições de não-equilíbrio (p.e. insaturação ou supersaturação) não são raras nos aquíferos cársticos. Uma das condições de não-equilíbrio mais enigmáticas nos sistemas hidrogeoquímicos é a insaturação da água em relação à calcita e dolomita sob circunstâncias em que estes minerais são abundantes. Experimentos laboratoriais, baseados nas taxas de dissolução da calcita, indicam que o equilíbrio seria alcançado em questão de horas ou dias (Howard & Howard, 1967; Rauch & White, 1977). Nos aquíferos que ocorrem na Pensilvânia e na Flórida, as águas mais antigas, em contato com a calcita e dolomita, permanecem insaturadas. Testes com traçadores, executados por Jacobson & Langmuir (1970) em certas porções do aquífero na Pensilvânia, indicaram que o tempo de residência da água subterrânea é de 2 a 6 dias, considerando uma distância percorrida de aproximadamente 7.000 m. Os autores concluíram que os tempos de residência de várias nascentes existentes na área são, em geral, um pouco maiores que 2 a 6 dias e que as amostras de água dos poços são muito mais antigas. Langmuir (1971) notou que os valores de pH e \ce{HCO^-3} das águas das nascentes tendem a aumentar com o tempo de residência subsuperficial. Uma porcentagem muito maior de amostras de água dos poços estava saturada, pois a água teve tempo suficiente para entrar em equilíbrio com a calcita e a dolomita no aquífero. Este estudo sugere que, em situações de campo, podem ser necessárias semanas ou até meses de tempo de residência para que a dissolução atinja o equilíbrio em relação à calcita e dolomita. Uma vez que nenhuma nascente ou amostra de água dos poços estava supersaturada em relação à calcita ou dolomita, Langmuir concluiu que as solubilidades destes minerais, baseadas nos dados termodinâmicos, representam os limites que controlam as concentrações de Ca2+, Mg2+, \ce{HCO^-3} e H+ na água subterrânea que atravessa esse sistema de rochas carbonáticas. O autor também concluiu que a evolução química da água segue estritamente o modelo de dissolução em sistema aberto. Em uma análise mais detalhada, ele notou que a dissolução incongruente da dolomita, em épocas onde o nível d’água é raso, e aquela decorrente da recarga, em períodos onde os níveis d’água são profundos, são processos que representam muitas das tendências dos dados, incluindo as razões molares Ca2+/Mg2+.

As poucas amostras insaturadas do aquífero em Manitoba representam o efeito de fluxos locais curtos ao longo de fraturas ou condutos em áreas de recarga. Embora estimativas detalhadas sobre a idade não possam ser deduzidas a partir dos dados existentes, espera-se que estas águas sejam muito jovens.

No aquífero na Flórida, onde a água subterrânea é muito mais antiga, as condições gerais de insaturação em relação à calcita e dolomita [Figura 7.12 (b)] são muito mais complexas do que no aquífero na Pensilvânia. As velocidades médias da água subterrânea na Flórida, calculadas a partir da datação por 14C, são iguais a 8 m/ano (Back & Hanshaw, 1970). Nas regiões onde há insaturação, a água subterrânea atinge idades de centenas a milhares de anos em algumas localidades. Back & Hanshaw (1970) sugerem que em áreas uma quantidade significativa de água provavelmente atinja o aquífero a partir da percolação em material arenoso que não esteja em contato com o calcário. Os autores também apontam que a blindagem da superfície do calcário por espécies iônicas inorgânicas ou por substâncias orgânicas pode produzir um estado de pseudo-equilíbrio entre as superfícies cristalinas e a solução. Existe também a possibilidade de que algumas amostras dos poços se tornem insaturadas, pois a água coletada representa uma mistura de outras águas com diferentes composições, provenientes de diferentes camadas ou porções do aquífero. A maioria dos poços na Flórida apresenta entrada de água ao longo de grandes intervalos verticais. A ocorrência de águas insaturadas como produto da mistura de duas ou mais águas saturadas, foi comprovada por Runnels (1969) e Thraikill (1968), e posteriormente demonstrada em estudos envolvendo simulação computacional, por Wigley & Plummer (1976).

Em uma extensa área do aquífero na Flórida, a água subterrânea está consideravelmente supersaturada em relação à calcita e dolomita. Back & Hanshaw (1970) e Langmuir (1971) sugerem que isso pode ser causado pela dissolução de quantidades traço de gipsita e que a condição de supersaturação é mantida por um desequilíbrio nas taxas de dissolução deste mineral em relação às taxas de precipitação do carbonato de cálcio (calcita ou aragonita). Esta interpretação é consistente com os resultados de um modelo cinético de evolução da química da água neste aquífero, descrito por Palciauskas & Domenico (1976). Estes autores desenvolveram um modelo matemático que mostra que a distância percorrida pela água subterrânea até atingir a saturação em relação às fases minerais é maior em função do aumento das taxas de mistura e da velocidade, diminuindo com o acréscimo das taxas de reação. A análise proposta pelos autores indica que as concentrações em estado de equilíbrio podem existir e manter um nível estável de supersaturação ou insaturação. Isto pode ocorrer quando a taxa de produção de uma ou mais espécies dissolvidas, provenientes é balanceada pela taxa de consumo destas espécies minerais pela precipitação de outro mineral.

Grande parte das águas do aquífero em Manitoba encontra-se supersaturada em relação à calcita e dolomita. Na Figura 7.13, a química da água, expressa em termos de pH, \ce{HCO^-_3}, Ca2+ e Mg2+, é comparada com os modelos em sistemas abertos simples de dissolução da dolomita e da calcita, separadamente e em sequência. Esta comparação indica que os dados geralmente encontram-se acima das linhas de equilíbrio (i.e., acima dos níveis que seriam alcançados se a água evoluísse diretamente para a condição de saturação sob dissolução em sistema aberto). Cherry (1972) atribuiu esta condição de não-equilíbrio à combinação de diversos fatores que incluem a mudança de temperatura, desgaseificação, troca catiônica e o efeito do íon comum causado pela dissolução da gipsita. A maior parte da recarga do aquífero ocorre em áreas onde este é recoberto por tilitos. O tilito é rico em dolomita, calcita, quartzo, feldspatos e argilominerais. Em profundidades rasas, apresentam pequenas quantidades de gipsita. Uma pequena parcela da supersaturação advém do aumento da temperatura que ocorre quando a água se move das camadas mais frias, nos primeiros dois metros do solo, em direção às porções mais profundas.

Em algumas áreas de recarga, é provável que durante parte do ano a pressão parcial de CO2 na zona não-saturada seja frequentemente menor do que os valores deste parâmetro registrados nos horizontes de solo ricos em matéria orgânica, onde o gás carbônico é gerado. Se o CO2 presente na água de recarga for liberado conforme a direção de fluxo da água subterrânea, o pH poderá aumentar. Isso poderia explicar o fato observado na Figura 7.13, em que a composição da água expressa como \ce{HCO^-_3}, Ca2+ e Mg2+ em relação ao pH geralmente encontra-se acima das linhas de equilíbrio (Cherry, 1972).

Figura 7.13 Dados químicos do aquífero cárstico em Manitoba plotados em diagramas que indicam as condições de equilíbrio, a 5 °C, para a dissolução de calcita e dolomita em sistema aberto e a dissolução sequencial destes dois minerais (calcita antes da dolomita, causando uma diminuição na solubilidade da dolomita, como resultado do efeito do íon comum) (Modificado de Cherry, 1972).

Um dos aspectos mais surpreendentes dos dados hidroquímicos dos três aquíferos descritos anteriormente refere-se à ocorrência bastante comum da condição de não-equilíbrio em relação às interações calcita-dolomita-água. Por causa disso, pode-se questionar o uso dos conceitos de equilíbrio como uma importante ferramenta em hidroquímica. No entanto, os conceitos de equilíbrio forneceram uma base útil para a interpretação dos dados de campo. O reconhecimento das discrepâncias do equilíbrio termodinâmico e do desenvolvimento de hipóteses para explicar tais dissonâncias constituem uma parte importante do processo de interpretação. Eventualmente, é possível interpretar os dados hidroquímicos mediante uma abordagem quantitativa das configurações de campo, incluindo equações que descrevem porções irreversíveis e cineticamente controladas do sistema, combinadas com os processos hidrodinâmicos de transporte.

Os dados hidroquímicos dos aquíferos podem ser usados para interpretar a evolução do parâmetro permeabilidade. Por exemplo, nas porções dos aquíferos que são insaturadas em relação à calcita ou dolomita, a água subterrânea dissolve a matriz porosa do aquífero. A porosidade e a permeabilidade, portanto, aumentam. Em termos de escala de tempo humano, essas mudanças são provavelmente imperceptíveis, mas na escala de tempo da linhagem evolutiva humana representam a base para o desenvolvimento de uma trama de condutos permeáveis e até mesmo de alterações importantes no terreno. O aspecto referente aos processos que ocorrem nas águas subterrâneas será analisado mais adiante, no Capítulo 11.

7.4 Águas Subterrâneas em Rochas Cristalinas

As rochas cristalinas, de origem ígnea ou metamórfica, possuem pelo menos uma característica em comum: contêm quantidades apreciáveis de quartzo e aluminossilicatos, tais como feldspatos e micas. Estes minerais formaram-se originalmente sob condições de temperatura e pressão muito acima daquelas existentes na superfície da Terra. Na superfície terrestre, solos e nos aquíferos, até profundidades de centenas ou milhares de metros, esses minerais são termodinamicamente instáveis e tendem a se dissolver quando em contato com a água. Os processos de dissolução fazem com que a água adquira constituintes dissolvidos e a rocha sofra alterações mineralógicas.

Como na evolução química  da água em rochas carbonáticas, a dissolução de feldspatos, micas e outros silicatos é fortemente influenciada pela natureza agressiva da água, ocasionada pela dissolução de CO2. Quando as águas ricas em CO2 e com baixo teor de sólidos dissolvidos entram em contato com os silicatos carregados de cátions, de alumínio e de sílica, estes minerais são lixiviados, propiciando a formação de um resíduo de aluminossilicatos com valores elevada razão de Al/Si. Normalmente este resíduo é um argilomineral como a caulinita, ilita ou montmorilonita. Os cátions liberados na água normalmente são Na+, K+, Mg2+ e Ca2+. Outra consequência deste processo de dissolução incongruente é o aumento do pH e da concentração de \ce{HCO^-_3}. As equações que descrevem essas mudanças químicas na água e no substrato rochoso, bem como as interpretações dos dados hidroquímicos de rochas ígneas e metamórficas são descritas a seguir.

Considerações Teóricas

De todos os minerais em que a água subterrânea entra em contato, o quartzo é o mais abundante, tanto em distribuição espacial quanto em massa. Esta discussão inicia-se, portanto, considerando-se a dissolução e a solubilidade do quartzo. A solubilidade desse mineral (SiO2) pode ser caracterizada (Stumm & Morgan, 1970) pelas seguintes reações de equilíbrio (valores de K a 25 °C):

SiO2 (quartzo) + 2H2O = Si(OH)4

Si(OH)4 = \ce{Si(OH)^-_3} + H+

\ce{SiO(OH)^-_3} = SiO2(OH)22 + H+

4Si(OH)4 = Si4O6(OH)62 + 2H+ + 4H2O

log K = –3.7

log K = –9.46

log K = –12.56

log K = –12.57

(7.7)

(7.8)

(7.9)

(7.10)

As espécies de silício dissolvidas também podem ser escritas na forma H2SiO4, \ce{H3SiO^-_4} e assim por diante, as quais retratam sua natureza ácida. A partir dessas equações pode-se demonstrar que no intervalo de variação de pH que inclui quase todas as águas subterrâneas (pH 6-9), a espécie de silício dissolvido predominante é o Si(OH)4. Em valores elevados de pH predominam outras espécies em solução e a sílica é mais solúvel. Os resultados das análises das concentrações de Si na água são normalmente expressos como SiO2. Sob essa forma, a solubilidade do quartzo é de apenas cerca de 6 mg/, a 25 °C (Morey et al., 1962). Contudo, há um indício considerável de que uma forma amorfa ou não cristalina de SiO2, ao invés de quartzo, controle a solubilidade da sílica em água. A solubilidade da sílica amorfa é de aproximadamente 115 a 140 mg/, a 25 °C (Krauskopf, 1956; Morey et al., 1964). Salienta-se que a solubilidade aumenta consideravelmente com a temperatura. Durante longos períodos de tempo, a sílica amorfa pode evoluir para uma estrutura cristalina e, eventualmente, transformar-se em quartzo.

Com base na solubilidade da sílica amorfa e abundância de quartzo na maioria dos sistemas hidrogeológicos, espera-se que SiO2 ocorra em altas concentrações em grande parte dos aquíferos. Contudo, isso não ocorre na natureza. Davis (1964) compilou milhares de análises de amostras de águas subterrâneas proveniente de várias áreas nos Estados Unidos e descobriu que as concentrações de SiO2 dissolvida variam tipicamente de 10 a 30 mg/, com um valor médio de 17 mg/. Estudos realizados em outras localidades indicam que tais valores são razoavelmente representativos em escala global. A água subterrânea é, portanto, invariavelmente muito insaturada em relação à sílica amorfa. Em geral, o quartzo e a sílica amorfa não exercem influência importante sobre o teor de SiO2 na água subterrânea. Neste sentido, são mais importantes os aluminossilicatos, tais como feldspatos e micas.

A partir de estudos sobre a natureza mineralógica e química de rochas ígneas e metamórficas intemperizadas e de princípios de termodinâmica, sabe-se que os feldspatos são alterados a minerais de argila e outros produtos de decomposição. A Tabela 7.4 mostra algumas reações comuns que descrevem esses processos de dissolução. Para simplificar, os feldspatos serão considerados apenas em termos de membros finais idealizados: feldspato potássico, feldspato sódico (albita) e feldspato cálcico (anortita). Na natureza, contudo, os feldspatos apresentam impurezas. Muitos tipos de feldspato contêm Na e Ca em várias proporções, como misturas de solução sólida dos dois membros finais, Na e Ca. Na Tabela 7.4 são também apresentadas as reações que descrevem a alteração dos argilominerais. As reações de dissolução incongruente na Tabela 7.4 estão descritas simplesmente pelas espécies dissolvidas apropriadas e ajustadas com o balanço estequiométrico. A principal hipótese inerente a essa aproximação é a conservação do Al. Isto é, como as solubilidades dos compostos de alumínio em água são extremamente baixas, a concentração total das espécies deste elemento (incluindo polímeros e complexos metálicos) removida da fase sólida é assumida como sendo desprezível. Considera-se, portanto, que a dissolução dos feldspatos gera produtos que incluem todo o Al removido da estrutura destes minerais. Estudos de campo e de laboratório demonstram que, na maioria dos casos, esta premissa é razoavel.

Tabela 7.4 Reações de dissolução incongruente de alguns aluminossilicatos*

Gibsita – Caulinita \ce{\underline{Al_2O_3 \cdot 3H_2O} + 2Si(OH)_4 = \underline{Al_2Si_2O_5(OH)_4} + 5H2O}
Na-Montmorilonita – Caulinita \ce{\underline{Na_{0.33}Al_{2.33}Si_{3.67}O_{10}(OH)_2} + \frac{1}{3}H^+ + \frac{23}{6}H2O =} \ce{\underline{\frac{7}{6}Al_2Si_2O_5(OH)_4} + \frac{1}{3}Na+ + \frac{4}{3}Si(OH)_4}
Ca-Montmorilonita – Caulinita \ce{\underline{Ca_{0.33}Al_{4.67}Si_{7.33}O_{20}(OH)_4} + \frac{2}{3}H^+ + \frac{23}{2}H2O} = \ce{\underline{\frac{7}{3}Al_2Si_2O_5(OH)_4} + \frac{1}{3}Ca^+ + \frac{8}{3}Si(OH)_4}
Ilita – Caulinita \ce{\underline{K_{0.6}Mg_{0.25}Al_{2.30}Si_{3.5}(OH)_2} + \frac{11}{10}H^+ + \frac{63}{60}H2O} = \ce{\underline{\frac{23}{20}Al_2Si_2O_5(OH)_4} + K^+ + 3Mg^{2+} + 2Si(OH)_4}
Biotita – Caulinita \ce{\underline{KMg_3AlSi_3O_{13}(OH)_2} + 7H^+ + \frac{1}{2}H2O} = \ce{\underline{\frac{1}{2}Al_2Si_2O_5(OH)_4} + K^+ + 3Mg^{2+} + 2Si(OH)_4}
Albita – Caulinita \ce{\underline{NaAlSi_3O_8} + H<sup>+</sup> + \frac{9}{2}H2O = \underline{\frac{1}{2}Al_2Si_2O_5(OH)_4} + Na+ + 2Si(OH)4}
Albita – Na-Montmorilonita \ce{NaAlSi_3O_8} + \frac{6}{7} \ce{H<sup>+</sup>} + \frac{20}{7}\ce{H2O} = \ce{\underline{\frac{3}{7}Na_{0.33}Al_{2.33}Si_{3.67}O_{10}(OH)_2}} + \ce{\frac{6}{7}Na+ + \frac{10}{7}Si(OH)4}
Microclínio – Caulinita \ce{\underline{KAlSi_3O_8}} + \ce{H<sup>+</sup>} + \frac{9}{2}\ce{H2O} = \ce{\underline{\frac{1}{2}Al_2Si_2O_5(OH)_4} + K+ + 2Si(OH)4}
Anortita – Caulinita \ce{\underline{CaAl_2Si_3O_8} + 2H<sup>+</sup> + H2O = \underline{Al_2Si_2O_5(OH)_4} + Ca^{2+}}
Andesina – Caulinita \ce{\underline{Na_{0.5}Ca_{0.5}Al_{1.5}Si_{2.5}O_8} + \frac{3}{2}H<sup>+</sup> + \frac{11}{4}H2O} = \ce{\underline{\frac{3}{4}Al_2Si_2O_5(OH)_4} + \frac{1}{2}Na+ + \frac{1}{2}Ca^{2+} + Si(OH)4}

­

*Fases sólidas estão sublinhadas.

Agora utilizaremos os dados termodinâmicos em um cenário de equilíbrio para termos uma melhor percepção a respeito de alguns resultados mais específicos das interações entre a água subterrânea e os feldspatos e argilominerais. Consideremos, por exemplo, a reação de dissolução da albita apresentada na Tabela 7.4. De acordo com a lei de ação das massas, este processo é expresso por:

K_{\text{alb-cau}} = \frac{[\ce{Na+][Si(OH)4]^2}}{\ce{[H+]}} (7.11)

onde Kalb-cau é a constante de equilíbrio e os valores entre colchetes as atividades químicas. Neste raciocínio, as atividades das fases minerais e da água são assumidas como valor unitário. Esta é uma abordagem válida quando se consideram os minerais com composições ideais em soluções não salinas. A Equação (7.11) pode ser apresentada na forma logarítmica como:

log K_{\text{alb-cau}} = \log{\ce{[Na+]}} + 2 \log{\ce{[Si(OH)4]}} - \text{pH} (7.12)

ou

\log K_{\text{alb-cau}} = \log{\left(\frac{\ce{[Na+]}}{\ce{[H+]}}\right)} + 2 \log{\ce{[Si(OH)4]}} (7.13)

o que indica que a condição de equilíbrio para a reação albita-caulinita pode ser expressa em termos de pH e atividades de Na+ e Si(OH)4. As reações caulinita-Na-montmorilonita e gibsita-caulinita (Tabela 7.14) podem ser expressas em termos de Na+, Si(OH)4 e H+ ou pH. Estas relações de equilíbrio representam a base para a construção de diagramas conhecidos, como os de estabilidade ou atividade-atividade. A Figura 7.14 ilustra exemplos destes diagramas. As linhas que separam as fases minerais nos diagramas indicam as relações de equilíbrio, tal como a Eq. (7.11). Considerando que os minerais em sistemas reais não possuem composições químicas ideais, as linhas de estabilidade traçadas a partir de dados termodinâmicos para as fases minerais relativamente puras talvez não representem com precisão os sistemas reais. Não obstante, esses tipos de diagramas são considerados úteis por muitos pesquisadores para a interpretação dos dados químicos de sistemas hidrogeológicos.

É possível ver na Tabela 7.4 que a dissolução incongruente de feldspatos, micas e argilominerais envolve o consumo de H+. A produção de CO2 no solo é normalmente considerada como a principal fonte de H+. À medida que essas reações ocorrem, há um progressivo aumento no pH da água. Se tais processos aparecem na zona não-saturada, onde a reposição de CO2 é significativa, o ácido carbônico (H2CO3), que é controlado pela pressão parcial de CO2 [Eq. (3.18)], permanece constante, enquanto as concentrações de \ce{HCO^-_3} e CO3–2 aumentam. Portanto, a concentração total de carbono inorgânico dissolvido também é acrescida. Por sua vez, caso as reações ocorram abaixo do nível d´água, onde não há reposição de CO2, o consumo de H+ ocasiona um decréscimo na concentração de H2CO3 e nos valores de PCO2, além de um aumento nos conteúdos de \ce{HCO^-_3} e CO32-, enquanto a concentração de carbono inorgânico total permanece constante. Nesse modelo teórico, observa-se que se as reações prosseguirem por tempo suficiente, a água subterrânea que percola rochas compostas por feldspatos e micas pode adquirir valores de pH superiores a 7 ou 8 e concentrações de \ce{HCO^-_3}  de muitas dezenas e até centenas de miligramas por litro.

Figura 7.14 Relações de estabilidade para gibbsita, caulinita, montmorillonita, muscovita e feldspatos, a 25 °C e 1 bar. (a) Gibbsita, Al2O3 · H2O; caulinita, Al2Si2O5(OH4); Na-montmorilonita, Na0.33Al2.33Si3.67O10(CH)2; e albita, NaAlSi3O8. (b) Gibbsita; caulinita; Ca-montmorilonita; e anortita, CaAl2Si2O8. (c) Gibbsita; caulinita; muscovita e microclínio (Modificado de Tardy, 1971).

As relações estequiométricas das reações de dissolução da calcita e feldspatos cálcicos (anortita) são idênticas; isto é, para cada mol de Ca+2 em solução, são consumidos 2 moles de H+. O balanço iônico é mantido, já que o H2CO3 se dissocia para formar \ce{HCO^-_3} e CO3–2, conforme deduzido na Figura 3.5 (a). Embora em teoria as águas do tipo Ca-\ce{HCO^-_3} possam se originar de rochas ou depósitos inconsolidados que contenham feldspato cálcico, na natureza isso é raro, provavelmente devido às baixas taxas de dissolução à medida que o feldspato é envolvido por películas de argilominerais que se formam como produto de reações incongruentes.

Consideraremos agora a evolução química que pode ocorrer quando águas doces, levemente ácidas (p.e. água de chuva), se infiltram no meio poroso onde o feldspato é a única fase mineral que sofre dissolução de forma significativa. A hipótese inicial é a de que apenas o feldspato sódico dissolve-se a uma taxa expressiva. No início deste processo, a água possui concentrações desprezíveis de Si(OH)4 e Na. Com o aumento das concentrações desses constituintes, a composição da água, expressa em termos de Si(OH)4 e Na+/H+, será plotada no campo de estabilidade da gibbsita, de acordo com o diagrama da Figura 7.14 (a). Isto indica que, do ponto de vista termodinâmico, a dissolução do feldspato sódico será incongruente, de modo a produzir gibbsita e produtos dissolvidos. À medida que a dissolução prossegue, os valores de Si(OH)4 e [Na+]/[H+] aumentam e a composição da água evolui do campo de estabilidade da gibbsita para o da caulinita. No campo da caulinita, a dissolução incongruente do feldspato sódico produz caulinita. Parte da gibbsita gerada nos estágios iniciais é convertida em caulinita. A seguir, os valores de Si(OH)4 e [Na+]/[H+] aumentam ainda mais e a água evolui quimicamente para o campo de estabilidade da montmorillonita sódica ou, diretamente, para o da albita. Quando a composição da água progride para o limite do campo de estabilidade da albita, atinge-se o equilíbrio em relação a este mineral e a dissolução do feldspato é interrompida. Para a água atingir o equilíbrio em relação aos feldspatos, são necessários um grande período de tempo e condições de fluxo muito lento. A água, no entanto, está em equilíbrio ou próxima disto com pelo menos uma outra fase mineral. Por exemplo, quando a composição da água encontra-se no campo de estabilidade da caulinita, o equilíbrio ou condição próxima a ele será alcançado  em relação a este mineral. Se a composição da água estiver no limite, entre os campos da caulinita e da montmorillonita, o equilíbrio, ou quase-equilíbrio, será atingido em relação a estes dois minerais.

Experimentos Laboratoriais

A discussão anterior sobre a dissolução de silicatos baseou-se nos conceitos de estequiometria e equilíbrio químico. Esta abordagem nada indica a respeito das taxas de dissolução ou da natureza microscópica deste processo. Para obter esse tipo de informação, são necessários experimentos de laboratório.

Os ensaios relacionados à dissolução de silicatos descritos na literatura podem, em geral, ser agrupados em duas categorias. A primeira delas engloba os sistemas de dissolução onde a água e os minerais reagem sob condições de fluxo nulo (Garrels & Howard, 1957; Wollast, 1967; Houston, 1972). A segunda categoria inclui experimentos em que a água escoa através de colunas cilíndricas preenchidas com minerais em forma granular, simulando um meio poroso (Bricker, 1967; Bricker et al., 1968; Deju, 1971). Os experimentos realizados em ambas categorias têm indicado que a dissolução dos feldspatos e micas evoluem em dois estágios principais. O primeiro surge em questão de minutos após o contato entre a água e as superfícies dos minerais, envolvendo a troca entre os cátions, presentes nas superfícies dos mesmos, e os íons de hidrogênio na água. Esta troca é seguida por uma dissolução, cuja taxa decai lenta e gradualmente com o tempo. O estágio de dissolução contribui com quantidades consideráveis de produtos na água em um período de horas ou dias, antes que a taxa de dissolução se torne extremamente baixa. Durante o primeiro estágio, a dissolução é normalmente congruente. No segundo estágio, por sua vez, a dissolução torna-se gradualmente incongruente.

Os resultados obtidos a partir de experimentos laboratoriais que envolvem a dissolução de minerais silicáticos em regime de fluxo nulo (Bricker, 1967; Houston, 1972) são ilustrados de forma esquemática na Figura 7.15. Nestes ensaios, o aumento nas taxas de concentração da solução é controlado pela cinética de dissolução mineral. Contudo, se o mineral estiver presente no meio poroso e a água fluir através do mesmo, a concentração de sílica em um dado ponto ao longo das linhas de fluxo dependerá da cinética de dissolução e da taxa de fluxo. Se o fluxo é rápido comparado à taxa de dissolução mineral, a concentração dos produtos desta reação a uma distância específica e ao longo das linhas de fluxo pode ser baixa quando comparada às concentrações alcançadas após o mesmo período de tempo de lixiviação e em condições de fluxo nulo. Este assunto será abordado com mais detalhe na Seção 7.8.

Figura 7.15 Liberação de sílica durante a dissolução de silicatos em água destilada, a 25 °C (Modificado de Bricker, 1967).

Embora os ensaios que envolvam a dissolução de feldspato e outros minerais silicáticos em soluções aquosas tenham sido conduzidos por inúmeros pesquisadores, os mecanismos que controlam a baixa taxa de dissolução destes minerais ainda são problemáticos. Para o feldspato, Petrovic et al. (1976) resumiram as hipóteses levantadas para explicar as baixas taxas de dissolução. Eles apontam que, de acordo com inúmeros autores, a dissolução é controlada pela taxa de difusão dos íons ao longo da camada externa ou de películas no entorno da superfície do mineral. Por exemplo, alguns autores sugerem a presença de películas contínuas, formadas por precipitados de sílica-alumina amorfa hidratada na superfície mineral; outros defendem as hipóteses relacionadas aos precipitados cristalinos por onde a difusão acontece. Em outra hipótese, presume-se que a difusão exista por meio de uma camada residual de feldspato lixiviado, composta principalmente por sílica e alumina, gerada na superfície destes minerais. Baseados em uma análise pormenorizada das superfícies reais dos grãos de feldspato, submetidos a um considerável processo de dissolução em água destilada, Petrovic et al. (1976) concluíram, contudo, que mesmo com a ausência significativa de camadas ou películas na superfície desses minerais, a dissolução no segundo estágio é muito lenta. A metodologia utilizada pelos autores consistiu em examinar detalhadamente a natureza das superfícies do feldspato mediante a ocorrência dos mecanismos de dissolução em laboratório. Como resultado desse trabalho, o conceito de películas contínuas e relativamente espessas, oriundas dos produtos da dissolução incongruente em silicatos, foi questionado.

A discussão anterior indicou, de modo geral, como os minerais silicáticos podem influenciar na composição química da água subterrânea em terrenos silicáticos. Deve-se ressaltar, entretanto, que a água subterrânea em sistemas hidrogeológicos reais reage simultaneamente com um grande número de silicatos de composições não-ideais. Os produtos sólidos gerados nas superfícies dos minerais a partir da dissolução incongruente são, em alguns casos, substâncias amorfas que necessitam de longos períodos de tempo para se converterem às formas cristalinas. Os argilominerais e os produtos amorfos da dissolução mineral possuem, em geral, considerável capacidade de troca catiônica e, assim, têm o potencial de alterar as proporções de cátions na água subterrânea. Para que a água atinja a condição de equilíbrio em relação aos silicatos primários, como os feldspatos, é necessário que as concentrações de Si(OH)4 e de cátions aumentem progressivamente à medida que a dissolução progride. Se os produtos gerados por esta reação na solução são continuamente lixiviados dos poros pelo fluxo de água subterrânea em quantidades consideráveis em relação às taxas de reação, o equilíbrio relativo aos minerais primários nunca será atingido. A natureza dos produtos de intemperismo dos argilominerais podem, no entanto, depender das condições hidrodinâmicas e hidroquímicas, bem como de fatores mineralógicos. Um exemplo de interpretação dos dados hidroquímicos em rochas graníticas, utilizando os conceitos de hidrodinâmica e dissolução mineral, é apresentado por Paces (1973).

No próximo item, as interpretações das análises químicas de amostras de água subterrânea em terrenos silicáticos serão brevemente avaliadas com base nas considerações teóricas descritas anteriormente.

Interpretação de Dados de Campo

A Tabela 7.5 apresenta um grupo de análises químicas de amostras de água de poços, nascentes e de fluxos de base em cursos d’água situados em terrenos cristalinos (granitos, dioritos, basaltos e anfibolitos) de várias partes do mundo. Todas as amostras possuem concentrações muito baixas de íons maiores. Sem exceção, o \ce{HCO^-_3} é o ânion mais abundante, enquanto que a sílica (SiO2) está presente em importantes concentrações em relação aos cátions. O Cl e SO42– aparecem em concentrações menores ou traço e a ocorrência destes ânions é normalmente atribuída às fontes atmosféricas, decomposição da matéria orgânica no solo e às impurezas presentes em rochas e minerais. Em geral, K+ é o cátion menos abundante.

Cabe ressaltar que Cl e SO42– não são constituintes importantes em rochas silicáticas e que não há tendência de formação de fácies destes ânions durante a percolação de água subterrânea nestas rochas. Isto acontece mesmo em fluxos regionais, onde as linhas de fluxo e os tempos de residência da água subterrânea são muito grandes. A sequência de evolução hidroquímica de Chebotarev, portanto, não é relevante nesses casos.

A interpretação geoquímica das análises de água em terrenos silicáticos envolve, comumente, duas abordagens principais. A primeira inclui a plotagem dos dados em diagramas de estabilidade de forma a determinar os possíveis produtos estáveis de alteração. A outra abordagem abrange o cálculo das sequências de reações que podem resultar nas concentrações observadas dos cátions maiores, além de \ce{HCO^-_3} e H+.

Tabela 7.5 Concentrações médias dos íons maiores nas águas subterrâneas e superficiais em terrenos compostos predominantemente por rochas ígneas (mg/)

  Local* Número pH \ce{HCO^-_3} Cl \ce{SO^2-_4} SiO2 Na+ K+ Ca2+ Mg2+
(1) Vosges, França 51 6,1 15,9 3,4 10,9 11,5 3,3 1,2 5,8 2,4
(2) Bretanha, França 7 6,5 13,4 16,2 3,9 15,0 13,3 1,3 4,4 2,6
(3) Maciço Central, França 10 7,7 12,2 2,6 3,7 15,1 4,2 1,2 4,6 1,3
(4) Fonte Alrance F, França 77 5,9 6,9 <3 1,15 5,9 2,3 0,6 1,0 0,4
(5) Fonte Alrance A, França 47 6,0 8,1 <3 1,1 11,5 2,6 0,6 0,7 0,3
(6) Córsega, França 25 6,7 40,3 22,0 8,6 13,2 16,5 1,4 8,1 4,0
(7) Senegal 7 7,1 43,9 4,2 0,8 46,2 8,4 2,2 8,3 3,7
(8) Chade 2 7,9 54,4 <3 1,4 85 15,7 3,4 8,0 2,5
(9) Costa do Marfim (Korhogo, estação seca) 54 5,5 6,1 <3 0,4 10,8 0,8 1,0 1,0 0,10
(10) Costa do Marfim (Korhogo, estação úmida) 59 5,5 6,1 <3 0,5 8,0 0,2 0,6 <1 <0,1
(11) Madagascar (planaltos) 2 5,7 6,1 1 0,7 10,6 0,95 0,62 0,40 0,12
(12) Serra Nevada, Califórnia (fontes efêmeras)   6,2 2,0 0,5 1,0 16,4 3,03 1,09 3,11 0,70
(13) Serra Nevada, Califórnia (fontes/nascentes perenes)   6,8 54,6 1,06 2,38 24,6 5,95 1,57 10,4 1,70
(14) Kenora, NW Ontário (aquífero livre) 12 6,3 24,0 0,6 1,1 18,7 2,07 0,59 4,8 1,54
(15) Kenora, NW Ontário (aquífero confinado) 6 6,9 59,2 0,7 0,8 22,1 3,04 1,05 11,9 4,94
*(1), nascente oriunda da água de degelo, 1967; (2) e (3), cursos d’água após vários meses de estiagem, verão 1967; (4) e (5), duas nascentes ao longo de 1966; (6), cursos d’água ao longo da Ilha após 6 meses de estiagem, 1967; (7), cursos d’água nas regiões orientais, período seco, 1967; (8), curso d’água em Guera, período seco, 1967; (9) e (10), cursos d’água na área de Khorogo, 1965; (11), nos planaltos e na costa leste, estação seca, 1967; (12) e (13), nascentes, 1961; (14) e (15), piezômetros instalados nas areias glaciais, oriundas da alteração de rochas pré-cambrianas graníticas.

Fontes: Tardy, 1971 (1) a (11); Feth et al., 1964 (12) e (13); e Bottomley, 1974 (14) e (15).

Inúmeros pesquisadores notaram que em terrenos ígneos a água subterrânea (até várias centenas de metros, a partir da superfície) e as águas superficiais, como as nascentes e os fluxos de base, recaem no campo da caulinita, conforme observado nos diagramas de estabilidade da Figura 7.14 (Garrels, 1967; Garrels & MacKenzie, 1967; Tardy, 1971; Bricker et al., 1968; Bottomley, 1974). Uma pequena porcentagem das amostra recai no campo da montmorillonita e quase nenhuma encontra-se nos campos da gibbsita, mica ou feldspatos ou excede o limite de solubilidade da sílica amorfa. Isto sugere que a alteração dos feldspatos e das micas para caulinita é um processo comum no fluxo de água subterrânea, em rochas ígneas. Em poucos estudos isso foi comprovado, a partir da investigação de películas nas superfícies dos minerais primários de origem ígnea. No entanto, não há muita informação sobre os produtos de alteração que se formam nesses sistemas em subsuperfície, além do que pode ser inferido mediante a composição química da água e os diagramas de estabilidade. Precipitados amorfos instáveis ou argilominerais intermediários metaestáveis podem persistir por longos períodos de tempo antes que os argilominerais realmente se cristalizem.

A segunda abordagem interpretativa compreende a modelagem química da água subterrânea a partir do cálculo dos dados. Isto pode ocorrer pela reação dos minerais primários, gerando argilominerais e produtos de dissolução pela reconstituição dos minerais primários, ou pela combinação dos argilominerais com os produtos de dissolução observados na água. Para ilustrar o conceito de reconstituição mineral, utilizaremos o exemplo apresentado por Garrels & MacKenzie (1967) na interpretação da evolução geoquímica de uma nascente efêmera, situada em área granítica na Serra Nevada, Califórnia. Os cálculos estão resumidos na Tabela 7.6. No topo da tabela, listam as concentrações médias dos constituintes dissolvidos na água da nascente e abaixo dela, são apresentadas as concentrações médias das amostras da água de degelo. Estes valores são representativos das águas de recarga dos aquíferos que alimentam as nascentes. Com o intuito de calcular as concentrações dos parâmetros químicos provenientes da lixiviação das rochas durante o fluxo em subsuperfície, subtraem-se os valores destes parâmetros nas amostras de água de degelo e as respectivas concentrações médias calculadas nas amostras das nascentes. Observa-se um pequeno déficit em ânions, após o cálculo. Este desequilíbrio foi corrigido, atribuindo-se ao \ce{HCO^-_3} um valor relativamente maior. Como primeiro passo à etapa de reconstituição dos minerais primários de origem granítica, responsáveis pela composição química das águas, a caulinita é convertida a plagioclásio numa quantidade suficiente para que todo o Na+ e Ca2+ sejam consumidos (etapa 2, Tabela 7.6).

Tabela 7.6 Valores médios para as composições das nascentes efêmeras em Serra Nevada, Califórnia, e as etapas computacionais de reconstituição da composição original da rocha, a partir da composição química média da água

Reação (coeficientes × 10-4)

Concentrações na água (mol/ × 10–4)

Produtos minerais
(mol/ × 10–4)

Na+

Ca2+ Mg2+ K+ \ce{HCO^-_3} SO42– Cl

SiO2

  Concentrações iniciais na água da nascente 1,34 0,78 0,29 0,28 3,28 0,10 0,14 2,73  
(1) Menos as concentrações na água de degelo 1,10 0,68 0,22 0,20 3,10 2,70  
(2) Transformação da caulinita novamente em plagioclásio                  
  1.23Al2Si2O5(OH)4 + 1,10Na+ + 0,68Ca2+ + 2,44\ce{HCO^-_3} + 2,20SiO22– =                  
  1,77Na0,62Ca0,38Al1,38Si2,62O8 + 2,44CO2 + 3,67 H2O 0,00 0,00 0,22 0,20 0,64 0,00 0,00 0,50 1,77Na0,62Ca0,38
feldspato
(3) Transformação da caulinita novamente em biotita                  
  0,037Al2Si2O5(OH)4 + 0,073K++ 0,22Mg2+ + 0,15SiO2 + 0,51\ce{HCO^-_3} = 0,073                  
  KMg3AlSi3O10(OH)2 + 0,51CO2 + 0,26H2O 0,00 0,00 0,00 0,13 0,13 0,00 0,00 0,35 0,073 biotita
(4) Transformação da caulinita novamente em K-feldspato                  
  0,065Al2Si2O5(OH)4 + 0,13K+ + 0,13\ce{HCO^-_3} + 0,26SiO22– =                  
  0,13KAlSi3O8 + 0,13CO2 + 0,195H2O 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,12 0,13 K-feldspato
Fonte: Garrels & Mackenzie (1967).

Nota: As concentrações na água para as etapas (2), (3) e (4) correspondem às concentrações residuais dissolvidas após o término da reação.

A caulinita é considerada como um mineral secundário, pois todas as análises de água das nascentes recaem no campo de estabilidade deste mineral, conforme ilustrado nos diagramas da Figura 7.14. Garrels & MacKenzie (1967) notaram que o plagioclásio resultante desta etapa é, de fato, similar ao encontrado nas rochas da região. Posteriormente todo  Mg2+ e uma parcela suficiente de K+, \ce{HCO^-_3} e SiO2 reagem com a caulinita para formar a biotita. Por sua vez, a quantidade restante de K+, \ce{HCO^-_3} e SiO2 reage para formar K-feldspato. Após esta etapa, há um remanescente de 4% da sílica original cujo percentual está dentro dos limites de erro das concentrações originais, utilizadas para caracterizar a composição química  média da água da nascente. Garrels & MacKenzie (1967) concluem que as reações funcionam muito bem, reforçando a hipótese de que as mesmas ocorrem em um sistema fechado, com consumo de CO2 , cujo produto do intemperismo é a caulinita.

Uma abordagem computacional alternativa consiste em reagir um grupo específico de minerais primários com a água rica em CO2, de modo a produzir as concentrações de cátions e \ce{HCO^-_3} detectadas em campo. Este método foi usado por Cleaves et al. (1970) e Bottomley (1974). O pH da água também pode ser considerado se forem propostas hipóteses plausíveis a respeito da  PCO2. A diferença entre as abordagens sobre reconstituição e dissolução mineral se dá somente para fins de cálculo. A adesão às reações estequiométricas e aos balanços de massa e de carga é inerente em ambos os métodos. É notável que, embora um terreno composto por silicatos possua inúmeros minerais diferentes, além de diversas variações na composição mineralógica ideal, a composição química da água possa ser avaliada mediante um número relativamente pequeno de reações, com minerais de composições ideais. Análises mais rigorosas sobre a evolução química da água subterrânea em terrenos silicáticos são atualmente dificultadas pela ausência de informações adequadas a respeito da cinética das reações, comportamento das assembleias minerais de composições não ideais, efeitos da dispersão, dentre outros fatores. A evolução química da água que atinge grandes profundidades do aquífero cristalino é influenciada por aumentos na temperatura e pressão. Contudo, a necessidade de incorporar estes dois fatores torna muito mais difícil o processo interpretativo. Alguns sistemas hidrogeológicos que ocorrem em terrenos formados principalmente por silicatos possuem composições químicas muito anômalas quando consideradas as premissas apresentadas acima. Por exemplo, em alguns locais, os valores de pH são superiores a 9 ou 10 e as concentrações de SiO2 excedem 100 mg/. Como sugestão de leitura, destaca-se o trabalho de Klein (1974) a título de exemplo de um estudo deste tipo de água subterrânea.

7.5 Água Subterrânea em Sistemas Sedimentares Complexos

Nos itens 7.3 e 7.4 abordou-se a evolução geoquímica da água subterrânea em rochas carbonáticas e cristalinas relativamente simples. Muitas rochas ou depósitos sedimentares inconsolidados, contudo, consistem de uma mistura de assembleias minerais, provenientes de diversas fontes sedimentares, ígneas ou metamórficas. Geralmente, até mesmo as camadas individuais possuem essa combinação de assembleias mineralógicas, podendo variar de camada a camada. Tais mudanças podem ocasionar grandes diferenças na composição química da água subterrânea, em diversas camadas e regiões. Vamos agora avaliar os fatores que controlam tais mudanças e algumas hipóteses que podem ser utilizadas na interpretação dos dados desses sistemas.

Ordem de Encontro

Um dos fatores mais importantes na evolução química da água subterrânea em camadas estratificadas ou mistas é a ordem de encontro, que se refere à sequência em que vários minerais ou grupos de minerais entram em contato com a água conforme esta se move ao longo do sistema de fluxo. Isto será ilustrado considerando as sequências de evolução química que ocorreriam em um sistema hidrogeológico hipotético, composto por quatro tipos de camadas: arenito, calcário, gipsita e folhelho. À medida que avançamos, novas premissas serão adotadas.

Na primeira sequência de evolução, a água atravessa o manto de alteração de um aquífero composto por calcário. A água torna-se rica em CO2, a uma pressão parcial de 10–2 bar, e infiltra-se até atingir o nível d´água. Durante a infiltração, a saturação em relação à calcita é alcançada por dissolução em sistema aberto. A água atravessa o calcário e entra na zona da gipsita, onde ocorre a dissolução da rocha até a saturação neste mineral. A partir da zona da gipsita, a água flui para o arenito e a seguir, para o folhelho.

A evolução química da água subterrânea nos inúmeros estágios dessa sequência foi estimada com base em várias premissas relativas à mineralogia e aos processos geoquímicos ao longo do sistema de fluxo. Os resultados são apresentados na Tabela 7.7. Assume-se que a composição química da água no solo seja totalmente controlada pelo dióxido de carbono e que todos os demais condicionantes químicos são negligenciáveis. A composição solo-água foi calculada considerando a hipótese descrita na Seção 3.5. Os cálculos foram simplificados com base na relação do balanço de cargas, onde H+ é totalmente balanceado pelo \ce{HCO^-_3}, uma vez que o pH é inferior a 8. A Tabela 7.7 indica que o pH da água do solo é 4,9.

Durante a infiltração da água no calcário, a dissolução de calcita em sistema aberto até a saturação é responsável pelo aumento do pH para 7,3. Nesta porção, a água adquire uma composição bicarbonatada cálcica, com baixas concentrações de sólidos totais dissolvidos (Tabela 7.7). Quando a água ingressa na camada de gipsita, a dissolução deste mineral até a saturação faz com que ela se torne salobra, sendo o Ca2+ e o SO42– os íons predominantes. Neste estágio do cálculo da composição da água, conclui-se que, embora a dissolução da gipsita propicie uma supersaturação em relação à calcita, a precipitação da calcita não prossegue a uma taxa significativa. Assim, o índice de saturação (ISc) deste mineral é alto, como indicado na Tabela 7.7. A supersaturação em relação à calcita é causada pelo efeito do íon comum.

Assume-se que, à medida que a água atravessa o arenito, haverá precipitação gradual da calcita, responsável pelo restabelecimento do equilíbrio deste mineral. O arenito é composto por quartzo e feldspato, portanto, assume-se que estes minerais não exerçam uma influência significativa na composição química da água. A precipitação da calcita ocasiona uma diminuição nos valores de pH de 7,3 para 6,7, e um aumento em PCO2 de 10–2 a 10–1,6 bar. As concentrações de Ca2+ e \ce{HCO^-_3} decrescem, em consequência a dos sólidos totais dissolvidos também decresce, embora a menos acentuadamente. Ca2+ e SO42– permanecem como os íons predominantes.

Tabela 7.7 Composições químicas estimadas da água subterrânea baseadas na dissolução e precipitação mineral e na troca catiônica durante o fluxo ao longo de uma sequência hipotética de calcário, gipsita, arenito e folhelho

Zona Processos geoquímicos Composição química da águaa a 25 °C Índices de saturação
Na Ca HCO3 SO4 STD pH PCO2 IScb ISgc
(1) Horizonte de solo orgânico, próximo à superfície Água torna-se rica em CO2 sob pressão parcial de 10–2 bar 0 0 0,07 0 21d 4,9 10–2 0 0
(2) Calcário (calcita) Dissolução da calcita em sistema aberto na presença de água rica em CO2 0 66 203 0 290 7,3 10–2 0 0
(3) Gipsita Dissolução da gipsita até a saturação; supersaturação em calcita 0 670 203 1.400 2.330 7,3 10–2 6,7 1
(4) Arenito (quartzo e plagioclásio) Precipitação da calcita causada pela restauração do equilíbrio  deste mineral 0 650 140 1.400 2.250 6,7 10–1,6 1 0,95
(5) Folhelho (Na-Montmorillonita) Troca de Ca2+por Na+; insaturação em relação à calcita e gipsita 725 20 140 1.400 2.350 6,7 10–1,6 0,06 0,2
aConcentrações expressas em mg/.

bISc= [Ca2+][CO32-]/K.

cISg= [Ca2+][\ce{SO^2-_4}]/K.

dSTD é composto principalmente por CO2 dissolvido (p.e., H2CO3).

Conforme a água atravessa o arenito e ingressa no folhelho montmorillonítico, o processo de troca catiônica é responsável por um decréscimo na concentração de Ca2+ até 20 mg/, valor que especificamos arbitrariamente. Por sua vez, os conteúdos de Na+ aumentam até atingirem o valor de 725 mg/. O processo de troca catiônica é representado pela Eq. (3.109). Como cada mol de Ca2+ adsorvido é substituído por 2 moles de Na+, a troca catiônica ocasiona um ligeiro acréscimo nas concentrações de sólidos totais dissolvidos, porém nenhuma alteração nos valores de pH e \ce{HCO^-_3}  é observada. A perda de Ca2+ faz com que a água se torne insaturada em relação à calcita e à gipsita (Tabela 7.7).

Na segunda sequência de evolução, a água atravessa a superfície do solo e, em seguida, as camadas de arenito, folhelho, calcário, alcançando finalmente a zona de gipsita. O valor de PCO2 no solo é de 10–2 bar, e a composição da água é a mesma que da primeira fase do exemplo anterior. No arenito, a dissolução do plagioclásio é incongruente (para reação de dissolução, vide Tabela 7.4). Assume-se que sob condições de sistema fechado 0,2 mmol de H2CO3 é consumido nesta reação e que uma grande parte do CO2 dissolvido é convertida em \ce{HCO^-_3}. Nestas condições, a água apresenta pequenas concentrações de Na+ e Ca2+, o pH aumenta para 6,5, e PCO2 diminui para 10–2,4 bar (Tabela 7.8).

Quando a água se move do arenito para o calcário, a dissolução da calcita até a saturação propicia um aumento do pH a 8,9 à medida que H+ é consumido pela conversão do CO2 dissolvido em \ce{HCO^-_3}. A PCO2 diminui de 10–2,4 para 10–4,4 bar.  As baixas concentrações de Ca2+ e \ce{HCO^-_3} presentes nesta água em relação àquela que atravessa o calcário, do exemplo anterior, ilustram a diferença entre os processos de dissolução em sistemas fechado e aberto.

À medida que a água ingressa na zona da gipsita, a dissolução deste mineral faz com que a água se torne salobra, sendo o Ca2+ e o SO42– os íons predominantes. Como resultado, haverá supersaturação em relação à calcita (Tabela 7.8). Para fins computacionais, considera-se que a calcita não precipita. Contudo, na natureza, este mineral precipitaria gradualmente, de modo que a supersaturação não perduraria. A precipitação da calcita causaria uma perda de Ca2+ da solução aquosa e a dissolução de mais gipsita. Em algumas situações, pode ocorrer o equilíbrio com relação à gipsita e calcita. Embora nesses exemplos as camadas de calcário e de gipsita controlem a evolução química da água subterrânea, resultados semelhantes poderiam ser alcançados caso a água atravesse as camadas apenas com quantidades muito pequenas de calcita e gipsita. Foi demonstrado na Seção 7.3 que meios porosos contendo apenas uma pequena porcentagem em peso de calcita, podem gerar água saturada neste mineral.

Tabela 7.8 Composições químicas estimadas da água subterrânea baseadas na dissolução mineral, precipitação e troca catiônica; as mesmas camadas da Tabela 7.7 estão organizadas em uma sequência diferente

      Composição química da água subterrânea* a 25 °C  

Índices de Saturação

  Zona Processos geoquímicos Na Ca HCO3 SO4 STD pH PCO2   ISc

ISg

(1) Horizonte de solo orgânico, próximo à superfície Água torna-se rica em CO2sob pressão parcial de 10–2 bar 0 0 0,07 0 21§ 4,9 10–2   0 0
(2) Arenito (quartzo e plagioclásio) Dissolução incongruente do plagioclásio em sistema fechado (consumo de 0,2 mmol de H2CO3) 1,6 2,8 12 0 38¶ 6,5 10–2,4   0,0005 0
(3) Folhelho (Na-Montmorillonita) Troca de Ca2+por Na+ 3,9 0,8 12 0 38 6,5 10–2,4   0,0001 0
(4) Calcário (calcita) Dissolução da calcita até a saturação em sistema fechado 3,9 8,4 31 0 35 8,9 10–4,4   1 0
(5) Gipsita Dissolução da gipsita até a saturação 3,9 600 31 1440 2100 8,9 10–4,4   75 1
*Concentrações expressas em mg/.
†ISc = [Ca2+][CO32-]/K.
‡ISg = [Ca2+][SO42-]/K.
§STD composto principalmente por CO2 dissolvido (p.e., H2CO3).
¶Inclui CO2 dissolvido e Si(OH)4.

Essas duas sequências hipotéticas de evolução indicam que a ordem em que a água subterrânea entra em contato com camadas de diferentes mineralogias pode exercer um importante controle na química da água. Conforme a água subterrânea flui por camadas de diferentes composições mineralógicas, sua composição sofre ajustes  ocasionados pela imposição de novas condições termodinâmicas controladas pela mineralogia. Embora em algumas camadas a água possa alcançar o equilíbrio local em relação a determinadas fases minerais, o fluxo contínuo faz com que um desequilíbrio se desenvolva à medida que a água se move para outras camadas constituídas por diferentes minerais. Considerando que sistemas hidrogeológicos contêm vários tipos de estratos dispostos em uma variedade geométrica quase ilimitada, é razoável esperar que em muitas áreas a composição química da água subterrânea apresente complexos padrões espaciais de difícil interpretação, mesmo quando há boas informações sobre a estratigrafia e cargas hidráulicas disponíveis.

Composição da Água em Depósitos Glaciais

A composição química da água subterrâneas em depósitos glaciais é bastante variável, já que os mesmos são compostos por misturas de assembleias minerais provenientes da erosão glacial das rochas do embasamento e dos sedimentos preexistentes. No entanto, algumas hipóteses podem ser estabelecidas em relação à composição da água nessas localidades. Na América do Norte há três categorias principais de composição nas quais a maioria dos aquíferos compostos por depósitos glaciais pode ser classificada.

  1. Águas do Tipo I: Águas ligeiramente ácidas, muito doces (< 100 mg/ STD), onde Na+, Ca2+ e/ou Mg2+ são os cátions predominantes e \ce{HCO^-_3}, o ânion abundante. Estas águas são brandas ou muito brandas. (Para uma definição de dureza e brandura da água, vide Item 9.1).
  2. Águas do Tipo II: Águas ligeiramente alcalinas, doces (< 1.000 mg/ STD), onde Ca2+ e Mg2+ são os cátions predominantes e \ce{HCO^-_3}, o ânion. Estas águas são duras ou muito duras.
  3. Águas do Tipo III: Águas ligeiramente alcalinas, salobras (≈1.000 a 10.000 mg/ STD). Na+, Mg2+, Ca2+, \ce{HCO^-_3} e SO42– geralmente ocorrem em maiores concentrações. Na maior parte destas águas, SO42– é o ânion predominante.

A água do Tipo I ocorre em depósitos glaciais situados em algumas porções do escudo Pré-Cambriano no Canadá e no norte dos estados de Minnesota, Wisconsin e Michigan. Estas águas também aparecem em partes do Maine, Vermont e New Hampshire, onde a cobertura glacial é derivada de rochas ígneas. A água do Tipo II é típica de depósitos glaciais localizados na região centro-oeste dos Estados Unidos e no sul de Ontário. A água do Tipo III ocorre extensivamente na região das Planícies Interiores dos Estados Unidos e do Canadá (Dakota do Norte, Montana, Manitoba, Saskatchewan e Alberta). (A água do Tipo II também existe na região das Planícies Interiores, embora seja menos comum do que a do Tipo III.)

Em cenários onde a contaminação proveniente de atividades agrícolas pela rede de esgoto é significativa, cada um desses tipos de água pode apresentar concentrações apreciáveis de \ce{NO^-3} ou Cl. Depósitos formados como resultado de processos glaciais em regiões montanhosas também contém água subterrânea, no entanto, devido à natureza local e variabilidade desses depósitos, eles não serão incluídos nessa discussão. As categorias gerais citadas acima referem-se apenas às águas cuja evolução química deve-se aos processos que ocorrem nos depósitos ou solos glaciais. Durante o curso dos seus históricos de fluxo, algumas águas subterrâneas armazenadas nos depósitos glaciais atravessaram anteriormente rochas do embasamento ou outros materiais de origem não-glacial. A composição química desta água, por sua vez, é comumente influenciada pelas reações que se sucederam nesses materiais não-glaciais.

Os depósitos glaciais onde a água do Tipo I é comum são originados a partir de rochas ígneas ou metamórficas. A evolução química desta água é controlada por interações com aluminossilicatos, conforme descrito na Seção 7.4. Como o intemperismo destes minerais ocorre lentamente em relação à velocidade da água subterrânea, as águas subterrâneas possuem concentrações muito baixas de sólidos totais dissolvidos, com valores de pH que normalmente não excedem a 7. Apesar de Ca2+ e Mg2+ serem algumas vezes os principais cátions, as águas são brandas pois suas concentrações totais são muito baixas. Embora as águas do Tipo I ocorrram em depósitos glaciais distribuídos em muitas partes do escudo do Pré-cambriano, há extensas áreas na Região do Escudo que possuem água do Tipo II. Isto acontece devido à presença de minerais carbonáticos oriundos da erosão glacial de rochas Paleozóicas do embasamento, paleozóicas próximas ao Escudo, ou erosão de inselbergs paleozóicos na área do Escudo, erosão de zonas locais de mármores ou outras rochas metamórficas que contenham minerais carbonáticos. Os rios e lagos que ocorrem no Escudo e são alimentados por água subterrânea apresentam águas ácidas ou alcalinas, dependendo da proximidade com os depósitos glaciais portadores de minerais carbonáticos.

As águas do Tipo II são essencialmente resultado da dissolução dos minerais carbonáticos sob condições de sistema aberto ou parcialmente aberto em relação ao CO2. Os processos de troca catiônica são comumente uma influência modificadora. As concentrações de Cl e SO42– raramente ultrapassam 100 mg/, já que minerais como gipsita, anidrita e halita estão normalmente ausentes. Os efeitos da dissolução dos silicatos primários, tais como feldspatos e micas, são bastante atenuados pelas concentrações muito maiores de cátions e \ce{HCO^-_3} provenientes da calcita e da dolomita.

Do ponto de vista geoquímico, as águas mais enigmáticas armazenadas nos depósitos glaciais são aquelas do Tipo III. Estas águas distinguem-se daquelas do Tipo II por conter quantidades muito maiores de Mg2+, Na+ e SO42– e, em menor grau, pelas concentrações mais elevadas de Ca2+. Devido à sua natureza salobra e aos elevados teores de SO42–, a água do Tipo III é, segundo o uso, uma característica negativa nas regiões em que ocorre. Esta água é geralmente imprópria para a irrigação e, em muitos casos, também para o consumo humano ou animal.

As principais características das águas do Tipo III podem ser explicadas pela combinação dos seguintes processos: dissolução da calcita e da dolomita em sistema aberto ou parcialmente aberto, que gera valores de pH entre 7 e 8 e concentrações de \ce{HCO^-_3} na faixa de 300–700 mg/; dissolução da gipsita (CaSO4 . 2H2O) e anidrita (CaSO4) que gera concentrações de SO42– desde várias centenas até 2.000 mg/, além de várias centenas de miligramas por litro de Ca2+ e; mudanças nas razões catiônicas ocasionadas pela troca iônica. Todos esses processos geoquímicos estão inter-relacionados. Cherry (1972), Davison (1976) e Grisak et al. (1976) usaram combinações estequiométricas dos quatro processos descritos anteriormente para explicar a ocorrência de águas  do Tipo III em várias áreas na região da Grandes Planícies Interiores de Manitoba e Saskatchewan. Uma vez que a calcita e a dolomita são onipresentes nos solos e depósitos glaciais da região, e que os valores de PCO2 no solo são comumente elevados, a dissolução destes minerais é a forma mais razoável para explicar os valores de pH e \ce{HCO^-_3} observados. As águas do Tipo III são tipicamente saturadas a moderadamente supersaturadas em relação à calcita e dolomita. Para que o SO42– ocorra como principal ânion na maioria das águas do Tipo III é necessário que apenas quantidades muito pequenas de gipsita sejam dissolvidas. As águas do Tipo III são geralmente insaturadas em relação à gipsita. Ao longo do fluxo de água subterrânea, a dissolução da gipsita é a principal causa do aumento nas concentrações de sólidos totais dissolvidos. Devido ao efeito do íon comum, o Ca2+ adicional geralmente produz água que é supersaturada em relação à calcita e dolomita.

Os processos de dissolução dos minerais descritos acima podem explicar os valores típicos de pH, STD, \ce{HCO^-_3} e SO42– normalmente encontrados nas águas do Tipo III, mas não as altas concentrações de Mg2+ e Na+ e tampouco as baixas mas significativas concentrações de Cl. Ocorre também a inexplicável deficiência de Ca2+ em relação ao SO42–. Uma explicação razoável para as principais características das águas de Tipo III envolve a influência conjugada da dissolução de carbonato pela ação de água rica em CO2 no solo, da dissolução de pequenas quantidades de gipsita e pela troca de Ca2+ por Na+ e Mg2+ em argilas montmoriloníticas. A disponibilidade de gipsita para dissolução é o fator determinante na evolução química da água doce para salobra. A entrada de Ca2+ oriundo da gipsita provoca o aumento nas concentrações de Na+ e Mg2+, conforme as reações de troca catiônica [Eqs. (3.106) e (3.109)] se ajustam para manter o equilíbrio. A gipsita é a principal fonte de SO42–, considerado como o principal ânion na maioria das águas do Tipo III.

A origem da gipsita nos depósitos glaciais é um assunto de muita especulação. Vários indícios sugerem que este mineral não estava presente durante a gênese desses depósitos. Cherry (1972) propôs uma hipótese baseada na precipitação de quantidades pequenas de gipsita, embora significativas, como resultado da intrusão salina em zonas rasas a partir das unidades profundas, durante a carga exercida pelos depósitos glaciais sobre a bacia sedimentar regional. Isto pode ter ocorrido nas porções superiores das várias unidades de tilitos durante os inúmeros períodos interglaciais do Pleistoceno. Em outra hipótese, a origem da gipsita é atribuída à oxidação de pequenas quantidades de sulfetos de ferro, como a pirita (FeS2), em superfície e subsuperfície. Os efeitos conjugados da infiltração, oxidação do sulfeto de ferro, dissolução da calcita e, posteriormente, da evapotranspiração, propiciaram a precipitação de gipsita em pequena profundidade. Estas teorias, contudo, não foram analisadas em detalhe. A origem do mineral mais importante na evolução química das águas do Tipo III permanece, portanto, alvo de controvérsia.

Águas Subterrâneas em Rochas Sedimentares Estratificadas

Sequências de rochas sedimentares estratificadas de origem continental, deltaica ou marinha são comuns na América do Norte. Tais sequências normalmente incluem arenitos, siltitos, folhelhos, calcários e dolomitos. Vários processos geoquímicos, previamente considerados em nossas discussões sobre outros ambientes hidrogeológicos também são importantes nesses ambientes deposicionais. Por exemplo, a dissolução de carbonatos e de pequenas quantidades de gipsita, anidrita ou halita comumente influenciam a composição dos íons maiores. A alteração de feldspatos, micas e argilominerais também podem ser importantes. O objetivo desta seção é descrever os quatro principais processos geoquímicos que são geralmente muito mais importantes nas rochas sedimentares estratificadas do que em ambientes hidrogeológicos considerados anteriormente. Estes são: (1) troca catiônica; (2) geração de CO2 na zona do solo; (3) redução bioquímica do sulfato; e (4) oxidação do sulfeto. A discussão enfoca a evolução da água subterrânea,  doce ou salobra, situada a centenas de metros da superfície. Sistemas mais profundos, nos quais surgem águas salinas ou salmouras, são abordados na Seção 7.7.

Uma característica marcante na composição química de muitas águas subterrâneas armazenadas em sequências sedimentares estratificadas é a ocorrência de Na+ e \ce{HCO^-_3} como íons principais. Em algumas situações, as concentrações de \ce{HCO^-_3} chegam a 2.500 mg/, equivalente a mais de meia ordem de magnitude acima dos valores típicos de bicarbonato presentes em aquíferos cársticos, compostos por calcário ou dolomito. As águas do tipo Na+-HCO3 ocorrem em depósitos terciários e cretácicos das Planícies Costeiras do Atlântico e do Golfo, nos Estados Unidos (Foster, 1950; Back, 1966), nas rochas terciárias e cretácicas no oeste de Dakota do Norte, Montana, sul de Saskatchewan e Wyoming (Hamilton, 1970; Moran et al., 1978a; Groenewold et al., no prelo), e em outras localidades. A presença de Na+ e \ce{HCO^-_3} como os íons mais abundantes pode ser explicada pelos efeitos combinados de troca catiônica e dissolução da calcita ou dolomita. Águas ricas em Na+ e HCO3 podem ser produzidas em sequências de camadas que contêm quantidades significativas de calcita ou dolomita e argilominerais com o Na+ trocável.

Os dois processos geoquímicos são representados pelas reações

\ce{CaCO3 + H2CO3} \ce{->} \ce{2HCO^-3} + \ce{Ca^{2+}} (7.14)

\ce{Ca^{2+} + 2Na(ad) <=> 2Na+ Ca(ad)} (7.15)

onde (ad) significa cátions adsorvidos nas argilas. O equilíbrio da Eq. (7.15) é para direita, enquanto existir Na+ disponível nos sítios de troca das argilas. A Equação (7.14) evolui para direita enquanto o produto de atividade [Ca2+][CO32-] for menor do que a constante de equilíbrio da calcita (i.e., até que IScalcita < 1) e enquanto houvercalcita disponível para dissolução. A remoção de Ca2+ da solução aquosa pela reação de troca catiônica faz com que a água se torne ou permaneça insaturada em relação à calcita, possibilitando a continuidade da dissolução deste mineral. Quando estes dois processos coexistem abaixo do nível d´água, a dissolução dos carbonatos ocorre sob condições de sistema fechado. O CO2 dissolvido, expresso como H2CO3, é consumido conforme os valores de pH, \ce{HCO^-_3} e Na+ aumentam. As relações entre estes parâmetros em águas de baixa salinidade, onde a calcita dissolve-se até alcançar o equilíbrio, são apresentadas na Figura 7.16. Para o intervalo de pH comum das águas subterrâneas, este gráfico indica que, se as baixas concentrações de Ca2+ forem mantidas, as concentrações de equilíbrio de \ce{HCO^-_3} serão elevadas.

Nas camadas terciárias e cretácicas situadas nas regiões citadas previamente, são comuns águas subterrâneas cujas concentrações de Ca2+ e Mg2+ são inferiores a poucas dezenas de miligramas por litro e superiores a 1.000 mg/, no caso de \ce{HCO^-_3}. O pH destas águas, por sua vez, varia tipicamente entre 7,0 a 8,5.

Figura 7.16 Solubilidade da calcita em água, a 10 °C, expressa como uma função do pH, Ca2+ e \ce{HCO^-_3}. As linhas de solubilidade são traçadas a partir da relação Keq = (Ca2+)(\ce{HCO^-_3})/(H+).

Para que as águas subterrâneas neste intervalo de pH apresentem elevadas concentrações de \ce{HCO^-_3}, é necessária uma alta produção de H+. Na Região das Planícies, a principal fonte de H+ é a oxidação de pirita (FeS2), considerada um constituinte comum das rochas da região (Moran et al., 1978). Os íons de hidrogênio são liberados a partir da reação

\ce{FeS2(s)} + \frac{1.5}{4}\ce{O2} + \frac{7}{2}\ce{H2O -> Fe(OH)3(s) + 4H+} + \ce{2SO_4^{2-}}} (7.16)

A oxidação deste material ocorre na zona de umidade do solo mediante o fornecimento de oxigênio pela atmosfera terrestre. A oxidação de uma quantidade muito pequena de pirita relativa a uma dada massa de material geológico promove uma queda acentuada nos valores de pH da água intersticial. Uma fonte adicional de H+ provém da produção de CO2 no solo da forma usual.

De acordo com as propriedades químicas das águas subterrâneas do tipo Na-HCO3 nas Planícies Costeiras do Atlântico e do Golfo, Foster (1950), Pearson & Friedman (1970) e Winograd & Farlekas (1974) concluíram que o CO2 é gerado a uma profundidade bem abaixo do nível d´água ao longo do sistema de fluxo. O gás carbônico reage com a água para formar H2CO3, propiciando a dissolução de calcita. Mecanismos como os descritos a seguir foram sugeridos para a geração de CO2 em profundidade:

Oxidação da matéria orgânica por sulfato:

\ce{2CH2O + SO_4^{2-} -> HCO^-3 + HS- + CO2 + H2O} (7.17)

Carbonificação (diagênese) do lignito:

\text{C}_n\ce{H2O ->} \frac{n}{2}\ce{CO2(g)} + \frac{1}{2}\text{C}_n\text{H}_{2n+2} (7.18)

Em ambientes anaeróbicos, a oxidação da matéria orgânica pode ocorrer pela redução de SO42–. Este processo, que requer ação catalisadora de bactérias anaeróbicas, é geralmente identificado em amostras de água pelo odor característico de ovo podre a partir da geração de H2S (HS + H+ = H2S). Águas subterrâneas cujo CO2 foi gerado pela redução de SO42– normalmente possuem baixas concentrações deste ânion e, por causa disso, distinguem-se daquelas com altas concentrações de NaHCO3, cuja evolução está associada apenas à dissolução de calcita e aos processos de troca iônica.

Algumas sequências estratificadas de depósitos continentais e deltaicos contêm quantidades apreciáveis de linhito. Foster (1950) e Winograd e Farlekas (1974) sugeriram que a carbonificação, um processo em que a temperatura e pressão em ambiente anaeróbico eliminam progressivamente a matéria volátil reduzida que subsequentemente se oxida na conversão do linhito para o carvão, é uma importante fonte de CO2 em algumas áreas das Planícies Costeiras do Atlântico e do Golfo. No entanto, esse processo pode não ser uma fonte importante de gás carbônico em depósitos ricos em linhito na Região das Grandes Planícies.

Já ilustramos como a água subterrânea armazenada em sedimentos estratificados ou inconsolidados pode seguir diversos caminhos de evolução geoquímica, dependendo de fatores como a sequência de encontros, taxas relativas de dissolução, disponibilidade e solubilidade mineral, presença de matéria orgânica e bactérias, condições de CO2, além da temperatura. Ainda que geralmente seja possível explicar a composição química da água subterrânea atual mediante modelos baseados nos fatores indicados acima, a hidroquímica dos sistemas de fluxo  da água subterrânea sofre mudanças progressivas e sobretudo irreversíveis durante longos períodos do tempo geológico, à medida que a água subterrânea atravessa continuamente os materiais geológicos. As pequenas quantidades de gipsita de outros minerais solúveis que fortemente influenciaram a evolução química da água subterrânea em muitos sistemas hidrogeológicos são gradualmente removidas desses sistemas. O Na+ que é substituído por Ca2+ nas águas subterrâneas ricas em sódio, é removido dos sítios de troca dos argilominerais. Minerais silicáticos como feldspatos e micas são continuamente transformados em argilominerais. As características dos perfis de solo nas áreas de recarga são alteradas lentamente pelos processos de lixiviação durante os sucessivos eventos de infiltração. Durante milhares ou milhões de anos tais mudanças afetam a composição e a morfologia da crosta terrestre. Os efeitos da geoquímica da água subterrânea ao longo da escala de tempo geológico serão abordados no Capítulo 11. Em uma escala de tempo mais bem mais recente, correspondente às últimas dezenas ou centenas de anos, as atividades antrópicas têm afetado a composição química das águas subterrâneas. No Capítulo 9, serão descritos alguns exemplos específicos de como tais atividades estão degradando a qualidade deste recurso.

7.6 Interpretação Geoquímica a Partir da Datação com 14C

Na Seção 3.8 foram apresentados os princípios do método de datação das águas subterrâneas com o 14C. O objetivo aqui é descrever algumas maneiras pelas quais os processos geoquímicos podem causar idades das águas subterrâneas que foram ajustadas ou correlacionadas a diferir daquelas idades de 14C obtidas através do decaimento ou não correlacionadas. A etapa inicial para a determinação da idade das águas subterrâneas pelo método do 14C consiste em precipitar vários gramas ou mais de carbono inorgânico, geralmente sob a forma de BaCO3 ou SrCO3, de uma amostra de água de 50–100 litros. A seguir determina-se por contagem radiométrica a porcentagem de 14C (i.e., a atividade específica) do carbono extraído do precipitado. O conteúdo de 14C normalmente é expresso como a razão (R) entre o 14C da amostra e o conteúdo de 14C do carbono moderno.

Baseada nesta relação, a Eq. (3.111) indica a idade não corrigida de uma amostra a partir dados de 14C. Para se considerar o aporte de carbono morto na água subterrânea em função dos efeitos de dissolução mineral abaixo do nível d’água, adotaremos um fator de ajuste, representado por Q, onde

t = —8270 ln R + 8270 ln Q (7.19)

Q é a fração de carbono inorgânico total dissolvido gerada abaixo do nível d´água por dissolução mineral ou oxidação da matéria orgânica. Assume-se que este aporte de carbono é isento de 14C. Para o carbono inorgânico na água proveniente dos processos de dissolução mineral na zona não-saturada, assume-se que exerça pouca influência no conteúdo do 14C da água devido ao seu rápido equilíbrio com o 14C do ar do solo, que contém 14C em níveis “modernos”. Esta definição de Q é consistente com aquela apresentada por Wigley (1975). O foco desta discussão abrange as condições que afetam Q e as formas para estimá-lo numericamente. Q corresponde à proporção entre a adição inicial de carbono inorgânico na água subterrânea, sob condições onde o carbono em solução mantém um teor de 14C igual ao do carbono moderno, e o conteúdo de carbono inorgânico total dissolvido na amostra.

O significado de Q será discutido mediante alguns exemplos, cuja premissa é de que águas de diferentes origens não se misturam. Consideremos uma situação em que a água se infiltra no solo e que ao atravessar a zona de produção de CO2, haverá um enriquecimento em 100 mg/ de carbono inorgânico dissolvido, oriundo do CO2 e da dissolução de calcita. A água, então, se movimenta ao longo do sistema de fluxo, sem dissolução adicional de calcita, em direção a um local onde uma amostra é coletada. Neste caso, o valor de Q para a amostra de água será igual a 1, pois a dissolução de minerais carbonáticos produz um conteúdo de 14C na água igual àquele proveniente do carbono moderno, independentemente das quantidades de 14C na calcita ou dolomita que se dissolvem no solo. Quando há dissolução de carbonatos na zona não-saturada, geralmente há produção de quantidade suficiente de CO2 pela decomposição da matéria orgânica moderna, de modo a manter o equilíbrio dos conteúdos de 14C entre a água e o solo. É de pouca importância que a matéria orgânica presente no solo possua dezenas ou mesmo algumas centenas de anos, pois tais períodos de tempo são relativamente curtos quando comparados à meia-vida do 14C (5.730 anos).

Em um segundo exemplo, a água no solo enriquece em 100 mg/ de carbono inorgânico dissolvido sob condições de sistema aberto (ou seja, em equilíbrio com a atmosfera) e, então, adquire mais 100 mg/ de carbono inorgânico em função da dissolução de calcita e dolomita, abaixo do nível d´água. Nessas condições, o valor de Q é 0,5. Quase toda calcita e dolomita que ocorre em sistemas hidrogeológicos é desprovida de 14C mensurável, pois ambos se originaram centenas de milhares ou milhões de anos atrás. Quando esses minerais são muito antigos, o conteúdo de 14C original é totalmente consumido por decaimento radioativo. A adição de carbono inorgânico dissolvido nas águas subterrâneas, em sistema fechado, é responsável pela diluição do carbono inorgânico original na água com o carbono não radioativo. Assim, o valor de Q será 0,5, uma vez que esta é a razão entre o 14C moderno e o carbono total, que é a soma do carbono original e aquele adicional, não radioativo.

No terceiro exemplo, as águas subterrâneas descritas anteriormente movem-se ao longo dos caminhos de fluxo em direção a uma zona em que o conteúdo total de carbono orgânico dissolvido, oriundo da dissolução de carbonatos, aumenta ainda mais. O valor de Q, portanto, torna-se menor. Por exemplo, se a água ingressa em uma porção onde o CO2 é gerado pela redução de sulfato e a calcita é dissolvida pelo aumento de gás carbônico e da troca catiônica Na-Ca, o carbono adicional deverá ser desprovido de 14C. A matéria orgânica que ocorre nas camadas geológicas é normalmente muito antiga e, portanto, não possui um conteúdo significativo de 14C. Se a água adquire 100 mg/ de carbono inorgânico da matéria orgânica e da calcita, o valor de Q será 100/300 = 0,33.

Em outro exemplo, vamos considerar a água subterrânea que percola as rochas graníticas totalmente desprovidas de minerais carbonáticos. Conforme a água se movimenta na área de recarga, ela se enriquece em CO2 a uma pressão parcial  de 10–2 bar e temperatura de 15 °C. A concentração de carbono inorgânico dissolvido é, portanto, de 21 mg/ e como o pH da água em equilíbrio com PCO2 é 5,0, o carbono inorgânico dissolvido está praticamente sob forma de H2CO3. Estes resultados foram obtidos usando os cálculos descritos na Seção 3.5. O fato de que a maior parte do carbono inorgânico dissolvido existe como H2CO3 pode ser deduzido a partir da Figura 3.5 (a). À medida a água se move ao longo da direção de fluxo no granito, o pH e a concentração de \ce{HCO^-_3} aumentarão gradualmente em decorrência da dissolução dos silicatos como feldspatos e micas. Eventualmente o pH pode alcançar valores superiores a 7 e quase todo o carbono inorgânico dissolvido ocorrerá como \ce{HCO^-_3}. O valor de Q, no entanto, permanecerá unitário enquanto estas mudanças ocorrem, já que nenhum carbono inorgânico novo é adicionado à água pela massa de rocha.

Esses exemplos demonstram que o parâmetro Q pode diminuir em algumas ocasiões conforme a água subterrânea evolui quimicamente ao longo dos fluxos regionais. Caso se queira obter estimativas úteis a respeito da “verdadeira” idade das águas subterrâneas mediante datação por 14C, primeiramente é necessário se compreender com algum detalhe a geoquímica do carbono inorgânico presente na água. Isso pode ser feito a partir de modelos conceituais como os descritos nos itens anteriores deste capítulo. Tais modelos podem ser testados e melhorados, usando os dados de 13C do carbono inorgânico das águas subterrâneas e das fontes de carbono no meio poroso. Discussões mais detalhadas a respeito dos métodos de correções das idades calculadas com o 14C baseados na interpretação de dados hidroquímicos e de 13C são apresentadas por Pearson & Hanshaw (1970), Wigley (1975) e Reardon & Fritz (1978).

Apesar dos exemplos acima, atenção foi dada ao fato de que a diluição do 14C por processos geoquímicos pode exercer grande influência na datação das águas subterrâneas por 14C, é importante ressaltar que as idades obtidas pelo método do 14C, no entanto, podem ser úteis em muitos tipos de investigações hidrológicas subsuperficiais. Dados de 14C podem contribuir com informações preciosas, apesar das incertezas consideráveis nas estimativas dos valores de Q. Em diversas ocasiões cálculos muito precisos a respeito da idade não são fundamentais para resolver o problema. Por exemplo, saber se a água possui idade de 15.000 ou 30.000 anos pode não ser crucial se existe certa confiabilidade na informação que a idade encontra-se neste intervalo, ou é até mais antiga. Considerando-se esta premissa, é uma sorte que as grandes incertezas quanto às determinações de Q para águas antigas tenham pouca influência no cálculo da idade da água subterrânea.

Por exemplo, se a idade não corrigida de uma amostra de água subterrânea é de 40.000 anos e o valor de Q for igual a 0,7, o valor corrigido, usando a Eq. (7.19), será de 37.050 anos. Se a incerteza associada ao Q for grande, por exemplo ± 0,2, o intervalo de idade calculado a partir do método do 14C variará entre 34.250 e 39.135 anos. Devido à escala logarítmica dos parâmetros na Eq. (7.19), o efeito de Q será pequeno para grandes valores t.

Em um dos casos hipotéticos mostrados anteriormente, o valor de Q calculado foi 0,3. É importante ressaltar que, em situações reais, isto seria considerado um valor extremo. Mook (1972) sugeriu, como regra geral, que o valor de Q de 0,85 corresponde a uma estimativa razoável para muitas situações. Wigley (1975) mostrou que em cenários onde não há geração de CO2 na zona saturada é muito improvável que Q seja inferior a 0,5.

Espera-se que nas próximas décadas haja um maior interesse em se identificar áreas cujas águas subterrâneas sejam antigas. Isso acontecerá à medida que houver maior interesse da sociedade em consumir água isenta de diversos produtos químicos que vêm sendo lançados no ciclo hidrológico. Alguns aquíferos profundos compostos por águas salinas ou salmouras e isolados da hidrosfera podem ser úteis para a disposição de resíduos. Por estas e outras razões, a identificação de como o 14C se distribui nas águas subterrâneas nos primeiros milhares de metros da crosta terrestre será importante nos próximos anos.

7.7 Efeitos-Membrana em Bacias Sedimentares Profundas

Neste livro serão enfocados principalmente os processos e características dos sistemas hidrogeológicos situados nas primeiras centenas de metros da crosta terrestre. Nestas localidades, em geral, as temperaturas são inferiores a 30 °C e as tensões de confinamento pequenas. No entanto, a maior parte da água subterrânea da crosta terrestre localiza-se a maiores profundidades, onde as temperaturas e as pressões são muito maiores do que aquelas consideradas anteriormente. As características químicas das águas nessas profundidades são comumente muito diferentes daquelas mais rasas. Os efeitos da temperatura e pressão na solubilidade dos minerais e complexações iônicas, aliados às maiores idades das águas profundas, são fatores que produzem distintas composições das águas. Águas salinas e salmouras são comuns a maiores profundidades, embora também possa ocorrer  águas salobras em algumas áreas.

Dentre os efeitos que influenciam a evolução química das águas subterrâneas em sistemas de fluxo profundo, selecionaremos apenas um, denominado efeito-membrana, como base para uma discussão mais detalhada. Outros efeitos são resultantes das extensões dos processos químicos descritos para os sistemas rasos. O efeito-membrana, no entanto, é relativamente exclusivo para os sistemas profundos em rochas sedimentares estratificadas. Para discussões mais detalhadas, sugere-se ao leitor os trabalhos de White (1957), Graf et al. (1965), Clayton et al. (1966), van Everdingen (1968b), Billings et al. (1969) e Hitchon et al. (1971). Para uma revisão sobre os estudos geoquímicos das águas subterrâneas em locais de altas temperaturas, propõe-se o trabalho de Barnes & Hem (1973).

Quando a água e os solutos são transportados ao longo de membranas semipermeáveis sob a influência de gradiente hidráulico, a passagem de solutos iônicos através das mesmas é restrita quando comparada à da água (vide Item 3.4). As concentrações no lado da entrada dos solutos na membrana, portanto, aumentam em relação às da saída. Este efeito de exclusão iônica é conhecido como filtração de sais, ultrafiltração ou hiperfiltração. A filtração de sais também pode existir na ausência de gradientes hidráulicos significativos em situações onde o movimento diferencial de íons ocorre devido à difusão molecular. Os efeitos da filtração de sais causados pela ação dos folhelhos, foram inicialmente propostos por Berry (1959) como um importante processo em bacias sedimentares. O conceito foi também utilizado por Bredehoeft et al. (1963) para explicar a concentração de salmoura em rochas sedimentares estratificadas. Esse processo foi demonstrado em laboratório por Hanshaw (1962), McKelvey & Milne (1962), Hanshaw & Coplen (1973), Kharaka & Berry (1973) e Kharaka & Smalley (1976). Acredita-se que as propriedades das membranas dos materiais argilosos devem-se às cargas não balanceadas das superfícies e bordas dos grãos de argila. Como indicado na Seção 3.7, a carga elétrica resultante nos grãos de argila é negativa, propiciando a adsorção de um grande número de cátions hidratados nas superfícies dos argilominerais. Em função de um número muito menor de sítios positivos nas bordas dos grãos de argila e de cargas locais não balanceadas decorrentes da camada ou camadas de cátions adsorvidos, há também uma tendência de que os ânions sejam incluídos nesta microzona de íons e moléculas de água situada no entorno dos grãos de argila. A capacidade das argilas e do folhelho em promover a filtração de sais se dá quando os grãos de argila são compactados de tal forma que as camadas de íons adsorvidos e as moléculas de água associadas ocupam uma grande proporção do espaço poroso remanescente. Como os cátions são as espécies predominantes nas microzonas que envolvem os grãos de argila, o fluido, que é relativamente imóvel nos poros compactados, desenvolve uma carga positiva. Portanto, quando uma solução aquosa eletrolítica atravessa os poros como resultado de um gradiente externo ou difusão molecular, os cátions em solução são repelidos. Para se manter a neutralidade elétrica ao longo da membrana, a passagem dos ânions pela membrana também é restrita. Ligeiras variações de carga causadas por uma pequena migração diferencial de cátions e ânions, conhecidas como potenciais de fluxo, produzem correntes elétricas na membrana. O potencial de fluxo também contribui para a retardação dos cátions no fluido forçados através da membrana.

Como uma forma conveniente de se expressar a eficiência da membrana de argila em retardar o fluxo das espécies iônicas, Kharaka & Smalley (1976) estabeleceram o conceito de taxa de filtração como sendo a razão entre as concentrações de entrada e saída das espécies em solução.

Berry (1969) e van Everdingen (1968c) descreveram os fatores que influenciam os efeitos da filtração em membranas em ambientes geológicos. Por causa das diferenças no raio iônico e na carga, há variações relativamente grandes nas taxas de filtração para os cátions maiores que ocorrem nas águas subterrâneas. Os cátions bivalentes são filtrados com mais eficiência que os monovalentes. O efeito-membrana é maior sob baixas taxas de fluxo da água subterrânea. Diferenças significativas nas taxas de infiltração entre os cátions monovalentes e bivalentes nem sempre ocorrem e, mediante algumas condições experimentais, esta tendência é revertida (Kharaka & Smalley, 1976). A temperatura do fluido também exerce um efeito considerável nas taxas de filtração. Nos experimentos de laboratório utilizando bentonita compactada, Kharaka & Smalley (1976) observaram que as taxas de filtração para os metais alcalinos e alcalinos-terrosos chegam a reduzir-se até à metade entre 25 e 80 °C. Eles atribuíram esta mudança ao efeito da temperatura na natureza e no grau de hidratação catiônica. Experimentalmente, Coplen (1970) notou que tanto hidrogênio como oxigênio são fracionados por meio das membranas de montmorilonita. Em função das diferenças de massa, 2H e 18O acumulam-se no lado de alta pressão da membrana. Outra importante conclusão obtida a partir dos experimentos laboratoriais,  mediante o uso de diferentes tipos de argila, é que aquelas com maior capacidade de troca catiônica possuem alta eficiência na filtração iônica. As argilas montmoriloníticas, portanto, são muito mais eficientes que as cauliníticas.

Se a filtração de sais, de fato, exerce uma influência significativa na evolução geoquímica das águas subterrâneas em bacias sedimentares, os efeitos deveriam ser visíveis quando a distribuição espacial de cátions e ânions fosse investigada em ambientes profundos onde as águas fluem ou sofrem processos de difusão ao atravessarem as camadas de argila ou folhelho. Combinação de dados químicos e potenciométricos que demonstre claramente os efeitos da filtração do sal em zonas profundas no interior de bacias sedimentares é extremamente difícil de se obter. Isto acontece por causa das condições hidrodinâmicas e estratigráficas que, em geral, são demasiadamente complexas em relação ao número e distribuição das sondagens e dos poços de monitoramento de água subterrânea normalmente disponíveis em investigações desta natureza. Apesar disso, a hipótese da filtração de sais tem sido considerada por muitos pesquisadores como uma explicação razoável para a ocorrência de composições químicas anômalas das águas subterrâneas em várias bacias sedimentares profundas na América do Norte e Europa. Embora teorias alternativas, fundamentadas na interação rocha-água ou em diferentes interpretações hidrodinâmicas possam ser defensáveis em algumas dessas  situações, não há dúvidas de que a filtração de sais é, em muitos casos, um fator importante. Em alguns trabalhos, a distribuição dos isótopos estáveis 18O e 2H tem sido usada como uma ferramenta adicional para a interpretação dos dados químicos e hidrodinâmicos (Graf et al., 1965; Hitchon & Friedman, 1969; Kharaka et al., 1973).

Todos os experimentos laboratoriais que foram conduzidos com base nas propriedades das membranas de argilas e folhelhos mostraram que grandes tensões efetivas devem ser aplicadas para se obter uma eficiência significativa na filtração dos sais. De acordo com tais ensaios, parece muito improvável que  este processo exista na maioria dos depósitos sedimentares em profundidades inferiores a 500–1.000m a partir da superfície do solo. Se a filtração de sais ocorresse comumente em profundidades mais rasas, a bem conhecida generalização que afirma que as concentrações de sólidos totais dissolvidos na água subterrânea tende a aumentar, ao longo do sentido de fluxo seria claramente inválida para muitas áreas.

Um problema não solucionado, no entanto, é se depósitos argilosos como os de tilitos argilosos submetidos a tensões de confinamento muito elevadas em um determinado período do tempo geológico podem ou não manter significativamente as propriedades da membrana após o desaparecimento de tais esforços. Esta questão é de particular relevância em regiões de terrenos sedimentares que foram varridos por geleiras. As geleiras continentais que atravessaram a maior parte do Canadá e o norte dos Estados Unidos possuíam espessuras de vários quilômetros. Em situações onde a pressão de fluidos subglaciais se dissipou durante o período de carga glacial, os depósitos argilosos sob as geleiras foram submetidos a grandes tensões efetivas verticais. Se as argilas destes depósitos mantiveram ou não capacidades significativas de efeito-membrana após o período de degelo e restabelecimento das condições crustais anteriores (rebote) ainda é uma questão ainda não solucionada. Schwartz (1974) e Wood (1976) invocaram o conceito de filtração de sais em depósitos glaciais argilosos como uma hipótese para explicar algumas tendências anômalas na composição química em dados de poços rasos localizados em áreas de tilitos argilosos no sul de Ontário e Michigan. As evidências de campo observadas pelos autores não são claras e esta hipótese ainda precisa ser avaliada a partir de estudos em outros locais, ou mediante testes de laboratório realizados nesses depósitos a fim de verificar se são capazes filtrar os sais.

7.8 Taxas de Processos e Difusão Molecular

Até o momento, deu-se ênfase à dissolução mineral e às reações de troca como os processos que operam dentro de uma situação de equilíbrio químico. As condições de equilíbrio são comumente observadas em experimentos de laboratório e são passíveis de descrição utilizando-se os conceitos de termodinâmica. Na natureza, contudo, os processos hidroquímicos evoluem muito lentamente, mesmo quando considerados na escala de tempo geológico. Como as taxas de muitas reações são lentas, a massa de água subterrânea permanece insaturada em relação aos minerais que constituem o meio poroso. As taxas podem ser lentas pois os íons não são facilmente liberados das estruturas cristalinas, ou porque o fluxo de água e dos produtos de reação entre a massa da água que flui e a superfície cristalina é lento, ou porque várias reações estão envolvidas, onde uma delas é lenta, determinando, assim, a taxa de reação no sistema. Materiais geológicos não fraturados, como cascalho, areia, silte e argila, caracterizam-se pela enorme variedade de tamanho dos poros. A maior parte da água move-se através dos poros maiores.  É esta água que é coletada quando os poços ou piezômetros são amostrados. A superfície sobre a qual as reações ocorrem, entretanto, é primordialmente a que engloba os poros menores. A área de superfície que abrange os poros maiores, na qual ocorre a maior parte do fluxo de água subterrânea, representa apenas uma pequena fração da superfície dos poros menores. Os processos pelos quais a maior parte da massa de água subterrânea adquire sua composição química podem ser fortemente influenciados pela taxa de transferência de água e de produtos de reação das superfícies dos poros menores para a água dos poros maiores. Esta taxa pode ser lenta. É razoável esperar que em muitas situações esta taxa de transferência seja controlada pela difusão molecular dos produtos de reação através do fluido dos poros menores  para os poros maiores onde são, então, transportados pela água subterrânea em um regime de fluxo ativo controlado hidraulicamente. Seguindo esta linha de raciocínio fica aparente que o tempo necessário para que o equilíbrio seja alcançado em um determinado experimento onde o material particulado reage em um recipiente sob agitação de sólidos e líquidos é normalmente menor do que aquele que ocorre em uma situação em que a água atravessa uma coluna preenchida com material que representa o meio poroso.

O efeito da taxa de transferência dos produtos de reação da superfície dos minerais que compõem o material de preenchimento da coluna para a massa de água que a atravessa é ilustrado na Figura 7.17. Em um campo de fluxo uniforme, a distância para se atingir a saturação, definida como distância de saturação, aumenta à medida que a taxa efetiva de transferência dos produtos de reação entre a superfície dos poros e a massa de água diminui [Figura 7.17 (a)]. Em um dado sistema de fluxo diferentes minerais podem apresentar distâncias de saturação variadas. A Figura 7.17 (b) ilustra o efeito da taxa de fluxo sobre a distância de saturação para uma espécie mineral simples.

Figura 7.17 Diagrama esquemático mostrando a influência da (a) taxa de reação efetiva e da (b) taxa de fluxo sobre a distância ao longo da linha de fluxo para a saturação ser atingida.

Em muitas situações, a relação entre as taxas de fluxo e as de reação efetiva é tal que a água passa por sistemas de fluxo complets sem que muitas espécies minerais presentes na rocha hospedeira alcancem a saturação. Este é particularmente o caso dos aluminossilicatos cujas taxas de reação efetivas são limitadas tanto pela taxa de transferência por difusão dos produtos de reação dos poros menores para os maiores, como pelas lentas taxas de liberação dos íons da estrutura cristalina dos minerais. Maiores detalhes a respeito do efeito das taxas de reação e de difusão na evolução química das águas subterrâneas podem ser adquiridos no trabalho de Paces (1976). Domenico (1977) revisou a teoria dos processos de transporte e as taxas de reação em sedimentos. Os ensaios de laboratório são descritos por Howard & Howard (1967) e Kemper et al. (1975).

Em muitos sistemas hidrogeológicos o fluxo de água subterrânea ocorre predominantemente ao longo de fraturas ou planos de acamamento. Rochas fraturadas como calcários, siltitos, folhelhos, basaltos ou mesmo depósitos fraturados inconsolidados, como algumas argilas e tilitos argilosos, possuem porosidades consideráveis na matriz não-fraturada dos materiais. Apesar da matriz possuir porosidade significativa, sua permeabilidade é tão baixa que o fluxo é pequeno quando comparado àqueles observados na rede de fraturas. Quando os poços ou piezômetros perfurados nestes materiais fraturados são amostrados, a água coletada corresponde àquela que flui no sistema de fraturas ao invés daquela existente no meio poroso. A composição química dessas amostras, contudo, pode refletir fortemente os resultados dos processos de difusão dos produtos de reação da matriz porosa para as fraturas. As aberturas das mesmas são normalmente pequenas, mesmo em camadas intensamente fraturadas. Em comparação com o fluxo de solutos em fraturas proveniente da difusão que ocorre na matriz porosa, o volume de água na rede de fraturas é normalmente pequeno. O fluxo difusivo a partir da matriz porosa pode, portanto, ser o fator que controla a evolução química da água subterrânea que flui na rede de fraturas. Esta evolução nos sistemas fraturados pode depender da mineralogia da matriz, dos coeficientes efetivos de difusão dos íons na matriz, do espaçamento das fraturas e das variações nas taxas de fluxo nas mesmas. Os aumentos graduais nas concentrações dos íons maiores ao longo dos sentidos de fluxo em sistemas regionais podem ser atribuídos, muitas vezes, aos efeitos de difusão na matriz.

Leituras sugeridas

BACK, W., & B. B. HANSHAW. 1965. Chemical geohydrology. Adv. Hydrosci., 1, pp. 49–109.

GARRELS, R. M., & C. L. CHRIST. 1965. Solutions, Minerals, and Equilibria. Harper & Row, New York, pp. 74–91.

HEM, J. D. 1970. Study and interpretation of the chemical characteristics of natural water. U.S. Geol. Surv. Water-Supply Paper 1973, pp. 103–230.

PACES, T. 1976. Kinetics of natural water systems. Proc. Symp. Interpretation of Environmental Isotopes and Hydrochemical Data in Groundwater Hydrology, Intern. Atomic Energy Agency Spec. Publ., Vienna, pp. 85–108.

STUMM, W., & J. J. MORGAN. 1970. Aquatic Chemistry. Wiley-Interscience, New York, pp. 383–417.

Problemas

Diversas questões a seguir requerem cálculos usando a lei de ação das massas e as equações de balanço de carga e de massa. Métodos computacionais apropriados podem ser utilizados a partir das informações apresentadas nos Capítulos 3 e 7. Sugerimos aos estudantes que desconsiderem, nos cálculos, os pares iônicos e complexos. Nas resoluções das questões algum erro será introduzido que poderia ser evitado utilizando-se cálculos mais entediantes. Os erros são geralmente pequenos e a natureza didática das questões não será alterada de forma significativa. Os valores das constantes de equilíbrio podem ser obtidos no Capítulo 3. Caso não constem no referido capítulo, tais valores podem ser calculados a partir dos dados de energia livre, listados em trabalhos conhecidos como os de Garrels & Christ (1965), Krauskopf (1967) e Barner (1971). Assume-se que a água subterrânea citada nas questões situa-se em profundidades suficientemente rasas e que os efeitos nas diferenças das pressões de fluido diferentes do valor padrão de 1 bar possam ser negligenciados.

  1. Uma amostra de água de chuva apresenta a seguinte composição química (concentrações em mg/): K+ = 0,3, Na+ = 0,5, Ca2+ = 0,6, Mg2+ = 0,4, \ce{HCO^-_3} = 2,5, Cl = 0,2, SO42– = 15 e \ce{NO^-3} = 1,2; pH = 3,5; temperatura = 25 °C. O pH da amostra pode ser explicado mediante um modelo hidroquímico baseado na hipótese de que a composição química da água possa ser representada pelo equilíbrio entre a mesma e o gás carbônico atmosférico, sendo esta reação o principal processo que controla este parâmetro? Caso contrário, apresente uma alternativa para explicar o controle do pH.
  1. Uma água de chuva que infiltra no solo possui pH = 5,7, K+ = 0,3, Na+ = 0,5, Ca2+ = 0,6, Mg2+ = 0,4, \ce{HCO^-_3} = 2,5, Cl = 0,2 e SO42– = 0,8 (concentrações em mg/).
    1. No solo, a água se equilibra com o ar cuja pressão parcial de CO2 (PCO2) é igual a 10² bar. Nestas condições, calcule as concentrações de H2CO3 e \ce{HCO^-_3} e o pH da água. Assuma que a água não reage com as fases sólidas no solo.
    2. No solo, a água que inicialmente possui concentração de oxigênio dissolvido em equilíbrio com o ar atmosférico (ou seja, ~9 mg/), tem metade desta concentração consumida pela degradação da matéria orgânica e a outra metade pela oxidação do sulfeto de ferro (FeS2). Assuma que o solo esteja saturado por água quando estes processos ocorrem, que a água não reage com outras fases sólidas e que CO2 e H2O são produtos da oxidação da matéria orgânica. Calcule o valor de PCO2, as concentrações de H2CO3 e SO42– e o pH da água. Qual é o processo que exerce maior controle nos valores de pH, a degradação da matéria orgânica ou a oxidação dos sulfetos?

  2. A água com concentração de 4 mg/ de oxigênio dissolvido flui sob o nível d’água em materiais geológicos que contêm 0,5% em peso de pirita (FeS2). Nesta porção do aquífero o oxigênio dissolvido é consumido pela oxidação deste mineral. Calcule o pH da água após a reação de oxidação, admitindo que o valor inicial deste parâmetro é 7,9. Considere que a água não reage com outras fases sólidas e que a temperatura é igual a 10 °C.
  1. Os seguintes resultados foram obtidos a partir da análise química de uma amostra de água subterrânea (concentrações em mg/); K+ = 21, Na+ = 12, Ca2+ = 81, Mg2+ = 49, \ce{HCO^-_3} = 145, Cl = 17, SO42– = 190, Si = 12; pH = 7,3; temperatura = 15 °C.
    1. Há alguma evidência de que esta análise possui erros analíticos significativos? Explique.
    2. Represente esta análise química mediante os seguintes diagramas: gráfico de barras, diagrama de pizza, diagrama de Stiff, diagrama de Piper, diagrama semi-logarítmico de Schoeller e diagrama de Durov.
    3. Classifique a água de acordo com as concentrações de cátions e ânions.
    4. Em qual diagrama não é possível distinguir a análise química desta amostra de outra com diferentes concentrações, mas com porcentagens iônicas semelhantes?
  1. Uma amostra de água subterrânea profunda, localizada na base de uma bacia sedimentar, possui condutividade elétrica igual a 300 milisiemens (ou milimhos).
    1. Estime aproximadamente a concentração de sólidos totais dissolvidos na água (em mg/).
    2. Qual é o ânion predominante na água? Explique.
  1. Uma amostra de água de poço perfurado em um aquífero cárstico constituído por calcário apresenta a seguinte composição química (concentrações em mg/): K+ = 1,2, Na+ = 5,4, Ca2+ = 121, Mg2+ = 5,2, \ce{HCO^-_3} = 371, Cl = 8,4 e SO42– = 19; pH = 8,1; temperatura = 10 °C.
    1. Supondo que esses dados representam a composição química real da água subterrânea nas proximidades do poço, determine se a mesma é insaturada, saturada ou supersaturada em relação ao calcário.
    2. O pH foi determinado no laboratório várias semanas após a coleta da amostra. Comente se a hipótese da questão (a) é ou não razoável.
    3. Supondo que as concentrações dos íons e a temperatura indicadas na questão (a) são representativas das condições in situ do aquífero, calcule os valores de pH e a PCO2 se a água estivesse em equilíbrio com a calcita no aquífero.
  1. Na área de recarga de um sistema hidrogeológico, a água do solo torna-se rica em CO2 a uma pressão parcial de 10–2,5 bar. A água infiltra-se pela areia quartzosa, atinge o nível d’água e, então, flui para o aquífero que contém calcita. A água dissolve a calcita até atingir o equilíbrio em uma porção cuja temperatura é de 15 °C. Calcule as concentrações de Ca2+ e \ce{HCO^-_3} na água, bem como os valores de pH e PCO2 após o equilíbrio ser alcançado.
  2. Em quais tipos de condições hidrogeológicas espera-se encontrar águas bicarbonatadas com pouco ou nenhum aumento nas concentrações de sólidos totais dissolvidos, ao longo de todofluxo regional de água subterrânea? Explique.
  1. Um aquífero composto por rochas carbonáticas, altamente permeável, possui águacom a seguinte composição (concentrações em mg/) a 5 °C: K+ = 5, Na+ = 52, Ca2+ = 60, Mg2+ = 55, \ce{HCO^-_3} = 472, Cl = 16, SO42– = 85; pH = 7,47. A água está saturada ou supersaturada em relação à calcita e dolomita. Decide-se injetar água superficial no aquífero com a seguinte composição (concentrações em mg/): K+ = 2,1, Na+ = 5,8, Ca2+ = 5,2, Mg2+ = 4,3, \ce{HCO^-_3} = 48, Cl = 5, SO42– = 3; pH = 6,5. A recarga ocorrerá por meio de uma rede de poços injetores que receberá água superficial segundo um reservatório aerado. Calcule a composição da água injetada no aquífero após atingir o equilíbrio em relação à calcita, a 20 °C. Desconsidere os efeitos de mistura entre a água injetada e a do aquífero. Explique porque existe uma grande diferença nas composições químicas das duas águas.
  1. Uma amostra de água rica em CO2, cujo valor de PCO2 no solo é de 10–1,5 bar, infiltra-se ao longo de um fluxo regional no aquífero que é composto por rocha granítica, ligeiramente fraturada. A água dissolve lentamente a albita, de forma incongruente, até alcançar a saturação em relação a este mineral. Suponha que todas as outras interações entre a água e os minerais constituintes da rocha sejam irrelevantes. Calcule a composição da água [Na+, Si(OH)4, \ce{HCO^-_3}, pH e PCO2] após a saturação da albita ser alcançada.
  1. Uma amostra de água subterrânea que percola um granito fraturado possui a seguinte composição (concentração em mg/): K+ = 1,5, Na+ = 5,8, Ca2+ = 10, Mg2+ = 6,1, \ce{HCO^-_3} = 62, Cl = 2,1 e SO42– = 8,3, Si = 12; pH = 6,8. A água adquiriu essa composição química em função da dissolução incongruente do plagioclásio no granito. Devido aos processos de dissolução, formou-se argila nas superfícies das fraturas.
    1. Indique os tipos de argilominerais ou outros minerais esperados. Suponha que o produto da reação da fase sólida possua estrutura cristalina, ao invés de amorfa.
    2. IO processo de dissolução incongruente poderia causar a diminuição ou aumento da permeabilidade da fratura? Explique.
  1. Estime a composição da água que resulta da reação, em 1 ℓ de solução, de 1 mmol de H2CO3 com (a) calcita, (b) dolomita, (c) albita, (d) biotita e (e) anortita. Expresse os resultados em milimoles por litro e miligramas por litro. Para cada caso, indique a direção de evolução do pH enquanto ocorre a dissolução.
  1. Estudos a respeito de um sistema regional de fluxo de água subterrânea em terreno sedimentar indicam que em parte deste sistema há um grande decréscimo nas concentrações de SO42– e um aumento acentuado nos valores de \ce{HCO^-_3} ao longo do sentido de fluxo regional.
    1. Quais processos geoquímicos poderiam causar tais mudanças nas concentrações desses ânions?
    2. Indique outras características químicas da água que deveriam mostrar tendências que reforcem sua explicação.
  1. Aágua subterrânea que percola uma camada de arenito estratificado situado dentro de uma sequência sedimentar composta por folhelho, siltito, linhito e arenito, todos de origem deposicional continental, possui a seguinte composição (concentrações em mg/): K+ = 1,2, Na+ = 450, Ca2+ = 5,8, Mg2+ = 7,9, \ce{HCO^-_3} = 1.190, Cl = 12 e SO42– = 20; pH = 7,5; temperatura = 15 °C. Qual é a combinação de processos hidrogeoquímicos que poderia explicar esta composição química? Escreva as reações químicas que fundamentam a sua resposta.
  1. A água subterrânea move-se em uma camada argilosa que é caracterizada por um coeficiente de seletividade de 0,7 em relação à reação de troca catiônica Mg-Ca, conforme apresentado nas Eqs. (3.105) e (3.107). A capacidade de troca catiônica é de 10 meq/100 g. As frações molares de Ca2+ e Mg2+ adsorvidos são iguais a 0,5. As concentrações de Ca2+ e Mg2+ na água são respectivamente 120 e 57 mg/. Considere que as concentrações de outros cátions sejam desprezíveis. Calcule as concentrações de equilíbrio de Ca2+ e Mg2+ após a mudança na composição química da água pela reação de troca Ca-Mg.
  1. A água subterrânea, a 25 °C, circula em uma camada de calcário onde torna-se saturada em relação à calcita. Em seguida ela percola outra camada que contém quantidades consideráveis de gipsita. Calcule a composição da água após atingir o equilíbrio em relação à gipsita. Suponha que a taxa de precipitação da calcita seja muito lenta quando comparada à taxa de dissolução da gipsita. Antes de ingressar na camada que contém gipsita, a água possui a seguinte composição (concentrações em mg/): K+ = 3,3, Na+ = 8,1, Ca2+ = 101, Mg2+ = 9,2, \ce{HCO^-_3} = 310, Cl = 12 e SO42– = 36.
  1. Construa um gráfico que ilustre a relação entre as idades não corrigida (não ajustada) e corrigida (ajustada), obtidas a partir da datação com 14C e do parâmetro Q, designados nos Itens 3.8 e 7.6. Considerando um valor específico de Q, as diferenças entre as idades corrigidas e não corrigidas são maiores para as águas mais jovens ou mais antigas? Explique porque o método do 14C, em geral, não é muito útil para datar águas subterrâneas mais novas que alguns milhares de anos.
  1. A água ao atravessar a zona não-saturada adquire, como resultado da dissolução em sistema aberto, uma concentração de \ce{HCO^-_3} equivalente a 96 mg/ e pH igual a 6,1. A seguir, ela atinge o nível d’água e ingressa na zona saturada de um aquífero composto por dolomito. Neste aquífero, a concentração de \ce{HCO^-_3} aumenta rapidamente, alcançando o valor de 210 mg/.
    1. Qual será o valor de Q a ser utilizado como ajuste na datação da água do aquífero a partir do método do 14C?
    2. A água possui uma idade não corrigida igual a 43.300 anos. Qual é a idade corrigida, com base nos valores de Q obtidos na questão (a)?
  1. Um aquífero horizontal de arenito ocorre entre duas camadas espessas de folhelho. O arenito é composto por quartzo e uma pequena porcentagem de feldspato. A água nesta camada não possui quantidades significativas de sólidos totais dissolvidos através da reação com os minerais do aquífero, ao contrário da água presente nos poros do folhelho, que possui alta concentração de sólidos totais dissolvidos. Considerando várias combinações entre a espessura do aquífero, velocidade da água subterrânea, gradientes de concentração nos aquitardes e os coeficientes de difusão, determine as condições onde a composição química da água no aquífero seria controlada pelo fluxo vertical ocasionado pela difusão molecular dos sólidos totais dissolvidos na camada de folhelho. Suponha que os sólidos totais dissolvidos que ingressam no aquífero estejam distribuídos uniformemente ao longo de toda espessura do arenito como resultado dos mecanismos de dispersão. Você acredita que tais condições poderiam ocorrer na natureza?
  1. A água subterrânea A, com um valor de PCO2 = 10–2, possui composição química proveniente da dissolução da siderita (FeCO3), em sistema aberto, em uma camada que não contém calcita ou dolomita. A água subterrânea B, com o mesmo valor de PCO2, apresenta uma composição resultante da dissolução, em sistema aberto, de calcita existente em uma camada sem siderita ou dolomita. As duas águas, ambas em equilíbrio com as suas respectivas fases sólidas, são interceptadas por um poço onde misturam-se em proporções iguais, à medida que o bombeamento ocorre. O sistema possui temperatura de 25 °C.
    1. Calcule as concentrações de cátions e ânions e os valores de pH de cada água.
    2. Determine a composição da água de mistura extraída pelo poço.
    3. A mistura é capaz de produzir calcita ou siderita por precipitação?
    4. Após o lançamento da água bombeada em um tanque a céu aberto, a 25 °C, calcita e/ou siderita poderiam precipitar?